Uma alma, vários vestidos

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O título? "A Corte do Norte". Mas a Corte do Norte nunca existiu - é um primeiro enigma (mas acontecem outros ao longo do livro de Agustina Bessa-Luís e do filme de João Botelho.) Só existiu se dermos por válido um lugar "com algumas casas de famílias nobres e distintas, chamando-se por isso a essa freguesia a Corte do Norte", escreveu o padre Fernando Augusto da Silva, no "Dicionário Corográfico do Arquipélago da Madeira" (1934). É, então, um espaço enigmático ficcionado por Agustina, depois de ter estado na Madeira, na Quinta da Vigia, durante poucos meses de 1986.

Numa das suas "Cartas do Campo Alegre", que escreveu para o "Diário de Notícias", a 3 de Março de 1986 - a data final do livro é um presente de Natal da romancista para os seus leitores, pois termina o livro no Porto, a 25 de Dezembro de 1986 -, nota: "A Madeira merece um romance. Está cheia de caminhos que levam à novela, aos sistemas de defesa contra a angústia." Para tal, depois de citar um poema de Rankô, evoca a "contínua queda das camélias". E acrescenta: "Se eu começar um romance da Madeira, começo assim: na noite, essa contínua queda das camélias, antigas espécies há muito plantadas na Quinta do Monte." Mas não é assim que Agustina abre "A Corte do Norte". É assim: "João Gomes, conhecido pelo 'Trovador', que casou no Funchal com a filha dum companheiro de Gonçalves Zarco, foi o homem de cuidados e suspiros.

Além de vereador da Câmara, em 1472, entrou na abundante polémica do Cancioneiro Geral acerca de quem melhor se ama: se o que cuida ou o que suspira." Para que não restem dúvidas: "Para entender este romance é preciso entender a linguagem nobre que foi prelúdio de poesia mística e castelhana. Mas que nos portugueses se chamou 'aquele cuidado esquivo/ não dá mais que sofrer/ ao coração divino, / no qual eu morrendo vivo,/ em grado de bem querer.'" Ou seja: as histórias de Agustina são narradas sempre entre esse fio que separa a vida da morte, entre o que é a verdade (se é que verdade existe) e a lenda.

Para "o comum dos mortais" (um outro título de um genial romance de Agustina), "A Corte do Norte" conta a história de Rosalina de Sousa, ou Baronesa da Madalena do Mar, a "boal de cheiro" ou a "cabrita", figura que Agustina compôs inspirando-se numa das maiores actrizes dos palcos portugueses nos finais do século XIX, Emília das Neves. A Linda Emília (1820-1883) ficou com o seu nome ligado, nos anais da imprensa da época, a "A Dama das Camélias", de Alexandre Dumas Filho, "Joana, a Doida", de Lady Hamilton, "Maria Stuart", tragédia de Schiller.

Em 1860, vamos encontrar Emília de Sousa na "pérola do Atlântico", ilha da Madeira, sob um outro nome: Rosalina de Barros - por casamento com um dos homens mais ricos da Madeira, João de Barros - ou Baronesa da Madalena do Mar. É nesses anos uma grande actriz - Almeida Garrett descobrira-a antes num bairro de Benfica em Lisboa, era uma prostituta mas Garrett, estonteado pela beleza da rapariga, investira nela - e é nessa altura que se dá o encontro (fatal?) com a mulher mais bonita da Europa, Sissi, a imperatriz da Áustria de quem se contavam histórias mirabolantes. Não perdeu tempo em imitar-lhe gestos e vestidos, e, quando ficou cara a cara com ela num baile no Funchal, Emília/Rosalina perdeu as estribeiras e saiu a correr.

A vida, desde esse dia, não voltou a ser a mesma. "Esta ilha mata-me", vociferou, fazendo cenas públicas na presença do marido. Quando Sissi partiu, não esteve de modas. Voltou-se para o marido: "O senhor não é mais o meu marido." Com malas feitas, abandonou a casa, foi viver para a Corte do Norte e, a partir de então, os seus comportamentos foram de escalada em escalada.

As relações de Rosalina - que encenaria, ou não, o seu suicídio nas falésias da Corte do Norte em 1885 - com os filhos (Lopo e Francisco) nunca foram as melhores. Mas o romântico Francisco nunca se esqueceu da memórias da mãe e enfiou-se na Corte do Norte para tentar descortinar o que lhe tinha acontecido, nunca deixando que a lenda, segundo a qual tinha caído da falésia, se afirmasse verdadeira.
Talvez a personagem mais trágica do romance, filho de uma união entre Tristão das Damas, um dos netos de Rosalina de Sousa, com a criada Alice, João de Barros casou-se com Margô em 1945. De todos os filhos que tiveram, uma era uma bela rebelde: Rosamund. Que, a partir de 1965, se torna numa imagem em tudo igual de Rosalina. O eterno retorno... Agustina descreve-a como a "mulher mais deslocada, mais meteórica que o Funchal já mais vira" e "inquieta de ficar quieta no mesmo lugar".

Uma que é várias

Enquanto escritor e realizador Jacinto Lucas Pires - que tem empatia forte com a ficção de Agustina - confirma esta linha condutora que, quer no romance quer no filme, se entrelaça sem que em Botelho ou em Agustina se conte a história de forma linear. À semelhança do livro, há, nota, "uma mulher que é várias, com diferentes nomes e diferentes tempos, num único lugar - ou num vocabulário porventura mais agustiniano, só uma alma para vários vestidos". Laura Bulger, estudiosa e incondicional agustiniana, concorda. "No fundo, todas elas uma só, a Mulher, sendo o romance um palco onde se desenrola um drama no feminino."

O romance é um romance - mesmo que Botelho tenha respeitado à risca a voz de Agustina - e um filme adaptado de um livro é outra coisa. Este livro, mais do que toda as outras obras de Agustina, está carregado de interrogações. O mistério subjacente ao livro está em saber quem é aquela mulher que se vai transmutando ao longo dos tempos; uma frase há que resume o coração do romance: "Porque se detestam as mulheres entre elas?" Quanto a Rosalina, que atravessa a vida de, pelo menos, três gerações, qual foi o seu verdadeiro projecto? Morreu por acidente? Ou embarcou na viagem de regresso de Sissi?

Cinematograficamente falando, Laura Bulger defende que "o cinema não lida bem com todas estas insinuações da obra de Agustina, o que de nenhum modo reflecte uma incapacidade interpretativa dos cineastas - mas, sim, as limitações da própria câmara".

O cinema não é literatura, diz também Lucas Pires, para quem "são um peso excessivo as passagens em que a voz da narradora conta tudo o que se vai passar, deixando para as imagens uma função meramente ilustrativa. Mas é, também, uma solução corajosa que consegue belos achados cinematográficos - a 'evaporação' de Boal, Rosalina ou cabrita, várias das suas designações, nas levadas é espantosa em todos os sentidos".

Literatura ou cinema?

Mas em que é que ficamos? Do lado da literatura ou do lado do cinema? Para Lucas Pires não se põe um problema de complementaridade ou de afastamento. "O filme quer descer até ao coração do livro - só que o livro não tem coração. No universo de Agustina, 'um facto é tanto mais um facto quanto mais se pode variar a sua composição' - o que, levado ao pé da letra por uma câmara de filmar, vem tornar visíveis os limites do cinema. Mas também é aí que reside o interesse do filme: um objecto fora de si, ou 'sobre si', um cinema que quer ser outra coisa, um lugar que é mais do que estranho porque é impossível", justifica o jovem escritor.

Menos estranho, para outro agustiniano, Álvaro Manuel Machado, é a solução encontrada por Botelho na "reinvenção do fio narrativo, actualizando a história do romance, sobretudo através da personagem de Rosamund, que permite a ligação entre os vários tempos narrativos sobrepostos, partindo do tal 'enigma e seus ornamentos' como diz Agustina". Mas aponta para outro "ponto de encontro", para outra perspectiva para se ver o romance e o filme: "João Botelho utiliza um melancólico e intimista fundo musical, predominantemente schubertiano, esse obsessivo 'espírito do lugar'" que tanto caracteriza a escrita da criadora de "O Mosteiro".

Depois de Oliveira

Quando se fala de adaptações das obras de Agustina ao cinema, elas estão umbilicalmente ligadas a Manoel de Oliveira. Botelho abre nova luz? Se para Álvaro Manuel Machado, Botelho se aproxima nitidamente de Oliveira, é porque "no cinema, como em todas as outras artes, existem afinidades electivas e não por árido mimetismo". Botelho "segue precisamente esse caminho, que é o da homenagem criativa". Maria Luiza Sarsfield Cabral pensa que há mesmo uma umbicalidade entre o Oliveira de "Vale Abraão" e o Botelho de "A Corte do Norte": a paisagem. Se Oliveira nos dá "um Douro esplendoroso, com as suas vinhas, muros de xisto, montes, hortas e tanques de esquina, é quase personagem do filme 'de carne e osso'", Botelho dá-nos o recorte da ilha do mar, com a sua orla negra, penhascos tremendos, os caminhos de cabra.
Já segundo Lucas Pires a ligação entre Botelho e Oliveira "é uma espécie de um jogo de citação, onde por vezes até se imagina um grãozinho de provocação à maneira de Agustina".

Quem sai vencedor da contenda entre livro e filme? Lucas Pires é claro: "É o livro, a partir de um ponto de partida assumido desde os primeiros planos (desde logo o próprio plano com a dedicatória para o realizador José Álvaro de Morais)."
Álvaro Manuel Machado não dá relevância à questão: "No confronto das artes não há vencedores nem vencidos. Logo o filme de João Botelho levará pelo menos alguns espectadores a ler 'A Corte do Norte' e o contrário também é verdade. Em suma, a ordem dos factores é arbitrária."
Maria Luiza Sarsfield Cabral é radical. "Nem a pergunta se pode formular dessa maneira, pois estamos perante duas liguagens de arte distintas e cada uma delas tem a sua lógica." Neste caso, nota, "dado que o cineasta se inspirou numa obra literária, importa ver se consegue, na sua nova linguagem, dar a profundidade e a turbulência do romance". Na sua opinião, "mais do que o filme quem sai vencedor é o cineasta".

Por ordem de entrada, "no filme" deste texto, participaram Maria Luiza Sarsfield Cabral - defendeu, em 1993, a tese de mestrado na Universidade Nova de Lisboa "Manter a Distância: a Dimensão Religiosa na Obra de Agustina Bessa-Luís.
Jacinto Lucas Pires - romancista, dramaturgo, escreveu argumentos de curtas, frequentou a New York Film Academy e realizou, com argumentos seus, "Cinemaamor" (1999) e "B.D." (2004)
Laura Bulger - professora da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, autora de "'A Sibila' - Uma Superação Inconclusa" (Guimarães Editores, 1990) e "Ângulo Crítico do Entendimento do Mundo. Estudos em Torno da Ficção de Agustina" (Edições Colibri, 2007).

Álvaro Manuel Machado - professor da Universidade Nova de Lisboa, que escreveu, entre outros títulos, "Agustina Bessa-Luís - Vida e Obra" (Arcádia, 1979) e "Agustina Bessa-Luís - O Imaginário Total" (Publicações Dom Quixote, 1983)

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O título? "A Corte do Norte". Mas a Corte do Norte nunca existiu - é um primeiro enigma (mas acontecem outros ao longo do livro de Agustina Bessa-Luís e do filme de João Botelho.) Só existiu se dermos por válido um lugar "com algumas casas de famílias nobres e distintas, chamando-se por isso a essa freguesia a Corte do Norte", escreveu o padre Fernando Augusto da Silva, no "Dicionário Corográfico do Arquipélago da Madeira" (1934). É, então, um espaço enigmático ficcionado por Agustina, depois de ter estado na Madeira, na Quinta da Vigia, durante poucos meses de 1986.

Numa das suas "Cartas do Campo Alegre", que escreveu para o "Diário de Notícias", a 3 de Março de 1986 - a data final do livro é um presente de Natal da romancista para os seus leitores, pois termina o livro no Porto, a 25 de Dezembro de 1986 -, nota: "A Madeira merece um romance. Está cheia de caminhos que levam à novela, aos sistemas de defesa contra a angústia." Para tal, depois de citar um poema de Rankô, evoca a "contínua queda das camélias". E acrescenta: "Se eu começar um romance da Madeira, começo assim: na noite, essa contínua queda das camélias, antigas espécies há muito plantadas na Quinta do Monte." Mas não é assim que Agustina abre "A Corte do Norte". É assim: "João Gomes, conhecido pelo 'Trovador', que casou no Funchal com a filha dum companheiro de Gonçalves Zarco, foi o homem de cuidados e suspiros.

Além de vereador da Câmara, em 1472, entrou na abundante polémica do Cancioneiro Geral acerca de quem melhor se ama: se o que cuida ou o que suspira." Para que não restem dúvidas: "Para entender este romance é preciso entender a linguagem nobre que foi prelúdio de poesia mística e castelhana. Mas que nos portugueses se chamou 'aquele cuidado esquivo/ não dá mais que sofrer/ ao coração divino, / no qual eu morrendo vivo,/ em grado de bem querer.'" Ou seja: as histórias de Agustina são narradas sempre entre esse fio que separa a vida da morte, entre o que é a verdade (se é que verdade existe) e a lenda.

Para "o comum dos mortais" (um outro título de um genial romance de Agustina), "A Corte do Norte" conta a história de Rosalina de Sousa, ou Baronesa da Madalena do Mar, a "boal de cheiro" ou a "cabrita", figura que Agustina compôs inspirando-se numa das maiores actrizes dos palcos portugueses nos finais do século XIX, Emília das Neves. A Linda Emília (1820-1883) ficou com o seu nome ligado, nos anais da imprensa da época, a "A Dama das Camélias", de Alexandre Dumas Filho, "Joana, a Doida", de Lady Hamilton, "Maria Stuart", tragédia de Schiller.

Em 1860, vamos encontrar Emília de Sousa na "pérola do Atlântico", ilha da Madeira, sob um outro nome: Rosalina de Barros - por casamento com um dos homens mais ricos da Madeira, João de Barros - ou Baronesa da Madalena do Mar. É nesses anos uma grande actriz - Almeida Garrett descobrira-a antes num bairro de Benfica em Lisboa, era uma prostituta mas Garrett, estonteado pela beleza da rapariga, investira nela - e é nessa altura que se dá o encontro (fatal?) com a mulher mais bonita da Europa, Sissi, a imperatriz da Áustria de quem se contavam histórias mirabolantes. Não perdeu tempo em imitar-lhe gestos e vestidos, e, quando ficou cara a cara com ela num baile no Funchal, Emília/Rosalina perdeu as estribeiras e saiu a correr.

A vida, desde esse dia, não voltou a ser a mesma. "Esta ilha mata-me", vociferou, fazendo cenas públicas na presença do marido. Quando Sissi partiu, não esteve de modas. Voltou-se para o marido: "O senhor não é mais o meu marido." Com malas feitas, abandonou a casa, foi viver para a Corte do Norte e, a partir de então, os seus comportamentos foram de escalada em escalada.

As relações de Rosalina - que encenaria, ou não, o seu suicídio nas falésias da Corte do Norte em 1885 - com os filhos (Lopo e Francisco) nunca foram as melhores. Mas o romântico Francisco nunca se esqueceu da memórias da mãe e enfiou-se na Corte do Norte para tentar descortinar o que lhe tinha acontecido, nunca deixando que a lenda, segundo a qual tinha caído da falésia, se afirmasse verdadeira.
Talvez a personagem mais trágica do romance, filho de uma união entre Tristão das Damas, um dos netos de Rosalina de Sousa, com a criada Alice, João de Barros casou-se com Margô em 1945. De todos os filhos que tiveram, uma era uma bela rebelde: Rosamund. Que, a partir de 1965, se torna numa imagem em tudo igual de Rosalina. O eterno retorno... Agustina descreve-a como a "mulher mais deslocada, mais meteórica que o Funchal já mais vira" e "inquieta de ficar quieta no mesmo lugar".

Uma que é várias

Enquanto escritor e realizador Jacinto Lucas Pires - que tem empatia forte com a ficção de Agustina - confirma esta linha condutora que, quer no romance quer no filme, se entrelaça sem que em Botelho ou em Agustina se conte a história de forma linear. À semelhança do livro, há, nota, "uma mulher que é várias, com diferentes nomes e diferentes tempos, num único lugar - ou num vocabulário porventura mais agustiniano, só uma alma para vários vestidos". Laura Bulger, estudiosa e incondicional agustiniana, concorda. "No fundo, todas elas uma só, a Mulher, sendo o romance um palco onde se desenrola um drama no feminino."

O romance é um romance - mesmo que Botelho tenha respeitado à risca a voz de Agustina - e um filme adaptado de um livro é outra coisa. Este livro, mais do que toda as outras obras de Agustina, está carregado de interrogações. O mistério subjacente ao livro está em saber quem é aquela mulher que se vai transmutando ao longo dos tempos; uma frase há que resume o coração do romance: "Porque se detestam as mulheres entre elas?" Quanto a Rosalina, que atravessa a vida de, pelo menos, três gerações, qual foi o seu verdadeiro projecto? Morreu por acidente? Ou embarcou na viagem de regresso de Sissi?

Cinematograficamente falando, Laura Bulger defende que "o cinema não lida bem com todas estas insinuações da obra de Agustina, o que de nenhum modo reflecte uma incapacidade interpretativa dos cineastas - mas, sim, as limitações da própria câmara".

O cinema não é literatura, diz também Lucas Pires, para quem "são um peso excessivo as passagens em que a voz da narradora conta tudo o que se vai passar, deixando para as imagens uma função meramente ilustrativa. Mas é, também, uma solução corajosa que consegue belos achados cinematográficos - a 'evaporação' de Boal, Rosalina ou cabrita, várias das suas designações, nas levadas é espantosa em todos os sentidos".

Literatura ou cinema?

Mas em que é que ficamos? Do lado da literatura ou do lado do cinema? Para Lucas Pires não se põe um problema de complementaridade ou de afastamento. "O filme quer descer até ao coração do livro - só que o livro não tem coração. No universo de Agustina, 'um facto é tanto mais um facto quanto mais se pode variar a sua composição' - o que, levado ao pé da letra por uma câmara de filmar, vem tornar visíveis os limites do cinema. Mas também é aí que reside o interesse do filme: um objecto fora de si, ou 'sobre si', um cinema que quer ser outra coisa, um lugar que é mais do que estranho porque é impossível", justifica o jovem escritor.

Menos estranho, para outro agustiniano, Álvaro Manuel Machado, é a solução encontrada por Botelho na "reinvenção do fio narrativo, actualizando a história do romance, sobretudo através da personagem de Rosamund, que permite a ligação entre os vários tempos narrativos sobrepostos, partindo do tal 'enigma e seus ornamentos' como diz Agustina". Mas aponta para outro "ponto de encontro", para outra perspectiva para se ver o romance e o filme: "João Botelho utiliza um melancólico e intimista fundo musical, predominantemente schubertiano, esse obsessivo 'espírito do lugar'" que tanto caracteriza a escrita da criadora de "O Mosteiro".

Depois de Oliveira

Quando se fala de adaptações das obras de Agustina ao cinema, elas estão umbilicalmente ligadas a Manoel de Oliveira. Botelho abre nova luz? Se para Álvaro Manuel Machado, Botelho se aproxima nitidamente de Oliveira, é porque "no cinema, como em todas as outras artes, existem afinidades electivas e não por árido mimetismo". Botelho "segue precisamente esse caminho, que é o da homenagem criativa". Maria Luiza Sarsfield Cabral pensa que há mesmo uma umbicalidade entre o Oliveira de "Vale Abraão" e o Botelho de "A Corte do Norte": a paisagem. Se Oliveira nos dá "um Douro esplendoroso, com as suas vinhas, muros de xisto, montes, hortas e tanques de esquina, é quase personagem do filme 'de carne e osso'", Botelho dá-nos o recorte da ilha do mar, com a sua orla negra, penhascos tremendos, os caminhos de cabra.
Já segundo Lucas Pires a ligação entre Botelho e Oliveira "é uma espécie de um jogo de citação, onde por vezes até se imagina um grãozinho de provocação à maneira de Agustina".

Quem sai vencedor da contenda entre livro e filme? Lucas Pires é claro: "É o livro, a partir de um ponto de partida assumido desde os primeiros planos (desde logo o próprio plano com a dedicatória para o realizador José Álvaro de Morais)."
Álvaro Manuel Machado não dá relevância à questão: "No confronto das artes não há vencedores nem vencidos. Logo o filme de João Botelho levará pelo menos alguns espectadores a ler 'A Corte do Norte' e o contrário também é verdade. Em suma, a ordem dos factores é arbitrária."
Maria Luiza Sarsfield Cabral é radical. "Nem a pergunta se pode formular dessa maneira, pois estamos perante duas liguagens de arte distintas e cada uma delas tem a sua lógica." Neste caso, nota, "dado que o cineasta se inspirou numa obra literária, importa ver se consegue, na sua nova linguagem, dar a profundidade e a turbulência do romance". Na sua opinião, "mais do que o filme quem sai vencedor é o cineasta".

Por ordem de entrada, "no filme" deste texto, participaram Maria Luiza Sarsfield Cabral - defendeu, em 1993, a tese de mestrado na Universidade Nova de Lisboa "Manter a Distância: a Dimensão Religiosa na Obra de Agustina Bessa-Luís.
Jacinto Lucas Pires - romancista, dramaturgo, escreveu argumentos de curtas, frequentou a New York Film Academy e realizou, com argumentos seus, "Cinemaamor" (1999) e "B.D." (2004)
Laura Bulger - professora da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, autora de "'A Sibila' - Uma Superação Inconclusa" (Guimarães Editores, 1990) e "Ângulo Crítico do Entendimento do Mundo. Estudos em Torno da Ficção de Agustina" (Edições Colibri, 2007).

Álvaro Manuel Machado - professor da Universidade Nova de Lisboa, que escreveu, entre outros títulos, "Agustina Bessa-Luís - Vida e Obra" (Arcádia, 1979) e "Agustina Bessa-Luís - O Imaginário Total" (Publicações Dom Quixote, 1983)