O mundo todo no palco
"Wallenstein" é uma série de três peças. A primeira chama-se "'O Campo de Wallenstein', é um Prólogo em um acto que se representa em cinco quartos de hora (...) é uma pintura do exército wallensteiniano, dá uma imagem da situação da Alemanha na Guerra dos 30 anos. (...) Pode representar-se isolada, mas fica melhor se for associada à segunda. (...) Esta segunda peça chama-se 'Os Piccolomini', do nome das duas personagens que intervêm. É em cinco actos, mas não chega a levar duas horas (...) A terceira peça chama-se 'Queda e Morte de Wallenstein' e é a tragédia propriamente dita. (...)
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"Wallenstein" é uma série de três peças. A primeira chama-se "'O Campo de Wallenstein', é um Prólogo em um acto que se representa em cinco quartos de hora (...) é uma pintura do exército wallensteiniano, dá uma imagem da situação da Alemanha na Guerra dos 30 anos. (...) Pode representar-se isolada, mas fica melhor se for associada à segunda. (...) Esta segunda peça chama-se 'Os Piccolomini', do nome das duas personagens que intervêm. É em cinco actos, mas não chega a levar duas horas (...) A terceira peça chama-se 'Queda e Morte de Wallenstein' e é a tragédia propriamente dita. (...)
Como a exposição já teve lugar e os dados já estão lançados, é uma acção contínua e ininterrupta (...). Tem também cinco actos e representa-se em menos de três horas." Isto escrevia Schiller a Iffland em Outubro de 1798 (tradução H. Brandão).
E eis que a Campo das Letras edita (pela primeira vez em português, que eu saiba, dois séculos depois!) um dos textos mais decisivos de Schiller, teatralização do que já escrevera na "História da Guerra dos Trinta Anos", o caso do general Wallenstein que negoceia a paz com o inimigo à revelia da Corte e para interesse pessoal. "Magnânimo e generoso com a soldadesca, era oscilante e indeciso no seu comportamento", disse o poeta que assim o criou na literatura, grandioso e mesquinho, herói ambíguo, fraco e imenso.
Quando, agora, nos entregamos à demorada leitura desta majestosa trilogia (e eu só via diante de mim a grandiosa Batalha de Tailleburg que pintou Delacroix, a peça tem essa grandiosidade e rapidez), não podemos deixar de nos espantar com a ambição poética, a desmesura, a super-abundância de meios, a vontade de falar de tudo e com todos, que está nesta obra maior do Romantismo - que, por razões económicas, tem tido reduzida fortuna cénica, resgatada recentemente pela formidável produção do Berliner Ensemble com Klaus Maria Brandauer no protagonista e direcção de Peter Stein.
Está lá tudo, ascensão, queda, traições, conspirações, multidões, escrúpulos, tragédia política e drama individual, plebe e aristocracia, tiranetes e revoltados, tudo cabe no teatro, e é isso o que Schiller foi ler em Shakespeare, sol.Sempre se disse que o programa político (o nacionalismo de Weimar) e estético (a destruição do classicismo) antecede e afoga, em Schiller, a espontaneidade da poesia. Talvez a sombra de Shakespeare, a vontade de ombrear com a sua alternância barroca, talvez a ambição seja maior do que o resultado. É maldição que se abate sobre ele, sempre considerado mais "importante" do que "artista", mais "decisivo" do que "iluminador", mais "determinado" do que "original", foi fama que se lhe colou.
Mas quem, agora, leia este imenso fresco de todas as paixões, vai com certeza estarrecer-se perante o que já foi possível imaginar para o teatro. É que era tudo, mas tudo mesmo, o que Schiller queria fazer entrar para dentro do palco, tempo, actores, batalhas, poder, morte, aniquilamento - e um país novo, uma nação, ideia então nova e com resultados bem ambíguos nos séculos seguintes.
A pequena burguesia, que iria ascender nas décadas seguintes, haveria de esquecer este teatro desmedido, ambicioso, excessivo, e preferir-lhe, pequenina, a verosimilhança da peça-bem-feita, essas medonhas histórias de herança e pertença que ainda nos dominam. (As saudades que tenho dos filmes de Orson Welles ou da "Lola Montes" de Max Ophuls, quando a arte queria o palco como mundo).
Havíamos de voltar a Shakespeare, foi o que nos foi dizendo Heiner Müller, farto do "teatro para dentistas" que agora triunfa e nos venceu (ai como odiei aquele "John Gabriel Borkman" linfático dirigido por Ostermeier à sombra de Peter Handke). Hoje, só posso agradecer ter voltado a Schiller durante estas duas longas noites. É que foi espantado, encantado, deslumbrado que me aventurei por este texto extraordinário - e rápido, veloz, fresco, contraditório, torrencial, belíssimo, contrariamente à fama que o carimbou nos manuais.Maria Hermínia Brandão, tradutora teatral (nomeadamente de John Arden para o TEP) que ainda agora verteu Elias Cannetti e, em 2007, nesta mesma Campo das Letras, nos dera um extraordinário (e ignorado, claro!) "As Histórias do Sr.Keuner", de Bertolt Brecht, conseguiu aqui uma tradução em verso que haveria de receber coroa de louros, se ainda esse desprendimento rodeasse os prémios: não embelezou nem desfeou, escolheu, encontrou rimas, umas ricas e outras pobres, não aperaltou o verso de Schiller, seguiu com o Poeta por linguagens diversas, deu-nos em português (plebeu, quebrado, elegante, militar...) aqueles versos nem sempre refinados de Schiller, que escreveu à sombra (nesses tempos considerada grotesca) da imensa língua dos isabelinos, sangue, suor e versos.
Obrigado.