Vaticano denuncia destruição organizada da identidade africana

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Bento XVI à chegada ao estádio em Yaoundé Reuters

O Vaticano denunciou ontem um “processo organizado de destruição da identidade africana” que está em marcha “sob o pretexto da modernidade” e a invasão depredatória das multinacionais. A afirmação consta do Instrumentum Laboris (instrumento de trabalho) da II assembleia especial do Sínodo dos Bispos sobre África, ontem apresentado pelo Papa Bento XVI aos representantes dos bispos de 52 países africanos em Yaoundé (Camarões).

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O Vaticano denunciou ontem um “processo organizado de destruição da identidade africana” que está em marcha “sob o pretexto da modernidade” e a invasão depredatória das multinacionais. A afirmação consta do Instrumentum Laboris (instrumento de trabalho) da II assembleia especial do Sínodo dos Bispos sobre África, ontem apresentado pelo Papa Bento XVI aos representantes dos bispos de 52 países africanos em Yaoundé (Camarões).

O documento é a base do trabalho do sínodo (assembleia) que decorre em Outubro no Vaticano. Foi apresentado no terceiro dia da viagem papal aos Camarões – hoje, Bento XVI chega a Luanda, onde ficará até segunda-feira. O texto (disponível em http://www.vatican.va/roman_curia/synod/index_po.htm) diz que a destruição da identidade africana “será tanto mais eficaz quanto mais o analfabetismo se mantiver, devido ao fraco investimento na educação pelos poderes públicos”.

As agências internacionais assinalam que, após a polémica sobre as declarações do Papa acerca do preservativo, este foi um dia mais consensual, na expressão da AFP. Mas as expressões do texto do Vaticano entregue pelo Papa aos bispos são violentamente críticas dos dirigentes africanos, da comunidade internacional, das multinacionais e até de diferentes aspectos da acção da Igreja Católica em África.

No texto, reconhecem-se desenvolvimentos positivos desde a realização da primeira assembleia do Sínodo sobre África, em 1994. Entre eles, “a emancipação dos povos do jugo dos regimes de ditadura anuncia uma nova era e o início, ainda que tímido, de uma cultura democrática”.

O documento regista contenciosos resolvidos pacificamente, a criação da União Africana e de fóruns internacionais como sinais da vontade de “tirar a África da pobreza e da marginalização”, o trabalho das comissões “Verdade e Reconciliação” no sentido do perdão e de evitar o caos, e o fortalecimento da sociedade civil.

Neste período de década e meia, houve também regressões e cenários repetidos em África: direitos humanos violados, guerras civis e regionais, corrupção política e económica, exploração das crianças e discriminação das mulheres. Os programas de reestruturação económica das instituições financeiras internacionais “revelaram-se muitas vezes funestos”. O perdão da dívida externa dos países mais pobres, que o Vaticano vem defendendo há anos, é de novo advogado no texto.

O documento é muito crítico também com as multinacionais que “não cessam de invadir o continente em busca de recursos naturais”. “Esmagam as companhias locais”, expropriam as populações “com a cumplicidade dos dirigentes africanos” e causam “dano ao meio ambiente”. A globalização, acrescenta o texto, ameaça “valores africanos autênticos” como o respeito dos anciãos e da vida e a cultura de entreajuda.

A entrega do documento foi solenizada pelo Papa durante uma missa, celebrada no estádio Amadou Ahidjo. Perante cerca de 60 mil pessoas entusiasmadas, Bento XVI entregou um exemplar do texto a cada um dos representantes dos episcopados dos países de África. Na missa, o Papa assinalou o “grande dinamismo da Igreja em África, mas também os desafios com os quais ela está confrontada”.

Intitulado A Igreja em África ao serviço da reconciliação, da justiça e da paz, o documento acusa ainda as “potências militares e económicas de impor a sua lei. Tráfico de armas, guerras e exploração das riquezas minerais do continente são alguns dos factos que os católicos devem “evitar”, sugere o texto.

A acção da Igreja não fica de fora. Cautelas e “discernimento” na escolha dos futuros padres e religiosas são também sugeridas, na sequência dos casos de abuso sexual que se registaram em vários países.

O farol muçulmano

Antes da missa, o Papa encontrara-se com 22 líderes das comunidades muçulmanas dos Camarões, perante os quais afirmou que ambas as religiões devem recusar “todas as formas de violência e totalitarismo”, porque estão fundadas “não só na fé, mas também sobre a justa razão”.


No país, a colaboração entre cristãos e muçulmanos é exemplar, com iniciativas sociais conjuntas em todo o país. “Possa a cooperação entusiástica de muçulmanos, católicos e outros cristãos nos Camarões ser um farol para outras nações africanas, do enorme potencial de um compromisso interreligioso pela paz, justiça e bem comum”, afirmou Bento XVI.

No discurso, o Papa acrescentou que “a religião e a razão se reforçam mutuamente”. Em Setembro de 2006, uma passagem de uma conferência de Bento XVI em Ratisbona (Alemanha), sobre a fé e a razão, foi interpretada como uma crítica a uma suposta irracionalidade do islão.

O discurso deu origem a muitas manifestações de rua contra Bento XVI e o Papa tem procurado sublinhar, depois disso, as possibilidades de colaboração entre os crentes das duas religiões. Uma das razões para a escolha dos Camarões como primeiro país a ser visitado por Bento XVI como Papa foi exactamente a convivência pacífica que existe no país entre as duas religiões.