O revolucionário em construção
Como será a melhor maneira de ver o retrato enviesado de Che Guevara por Steven Soderbergh, que faz a ponte entre a ascensão de Che, pré-conquista de Havana pelos rebeldes de Castro, e a sua decadência e morte numa aventura revolucionária condenada à partida nas selvas da Bolívia? Como dois filmes distintos, vistos em sequência ou separados? Como um único filme "cortado ao meio"?
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Como será a melhor maneira de ver o retrato enviesado de Che Guevara por Steven Soderbergh, que faz a ponte entre a ascensão de Che, pré-conquista de Havana pelos rebeldes de Castro, e a sua decadência e morte numa aventura revolucionária condenada à partida nas selvas da Bolívia? Como dois filmes distintos, vistos em sequência ou separados? Como um único filme "cortado ao meio"?
A estratégia global tem sido estrear "Che" como dois filmes separados com semanas de intervalo (a primeira parte, "O Argentino", estreou ontem; a segunda parte, "Guerrilha", chega daqui a duas semanas), embora alguns (poucos) países o tenham estreado como um filme único de quatro horas e 20. Começa por parecer ingrato ver as duas partes separadamente - até percebermos que o que Soderbergh fez permite a "Che" ser visto de qualquer das maneiras, quer como um filme único quer como dois separados. A "geometria variável" do projecto desafia todas as convenções: um filme com orçamento de grande produção mas financiamento europeu independente (nenhum estúdio americano quis tocar no filme) e alma de experiência de arte e ensaio, sobre um dos ícones mais marcantes da década de 1960, mas que evita todos os momentos icónicos da sua vida.
Nada que nos surpreenda vindo de um cineasta como Soderbergh, cujo frenesi criativo o vê passar de "encomendas" de estúdio como "Erin Brockovich" e a série "Ocean''s Eleven" a experiências independentes como "Vidas a Nu" ou "Bubble" - e às vezes até a conseguir combinar ambas, como em "Solaris" ou "O Bom Alemão". "Che" está mais perto da sua vertente experimental/independente no modo como segue por portas travessas em busca da essência do seu tema - no caso, o que fez de Ernesto Guevara, médico argentino que embarcou na aventura da revolução cubana ao lado de Fidel Castro, Che Guevara, o guerrilheiro romântico imortalizado como ícone revolucionário anti-capitalista - e como ao mesmo tempo se recusa a responder às perguntas que ele próprio faz.
Muito simplesmente, as duas partes de Che são o mesmo filme contado de dois pontos de vista diferentes: a revolução quando triunfa (a primeira parte, com as sucessivas vitórias cubanas de 1955-1959, rodada em écrã panorâmico com uma cronologia fragmentada) e quando é derrotada (a segunda parte, com a aventura boliviana de 1966-67, rodada em écrã "normal" em narração linear), como quem diz que basta um ligeiro "efeito borboleta", uma curva para a esquerda em vez de para a direita, para tudo mudar, com Che como única constante. Ao mesmo tempo, "Che" é uma espécie de épico guerreiro sem batalhas, mais focado nos pequenos episódios do quotidiano das acções de guerrilha nas selvas da Serra Maestra ou da Bolívia, intercalados (na primeira parte) com a alocução de Che às Nações Unidas em 1964 (rodada a preto e branco "vérité"), contrastando o Che pensador com o Che pragmático e homem de acção.
O mosaico do "antes e depois", com a preciosa ajuda de um Benicio del Toro extremamente contido, propõe um retrato possível do "revolucionário em construção", uma hipótese de perceber como chegou aqui - embora sem nunca querer sequer explicar o que o faz mexer. Desengane-se quem está a espera que "Che" ilumine porquês - há muito que fica (propositadamente) de fora neste retrato (duplamente) parcial, e esse muito inclui, por exemplo, todos os seus momentos de glória em Cuba; como se o que interessasse a Soderbergh fosse apenas "o processo revolucionário em curso", a "pequena história" escondida por trás da História.
Obviamente, isso faz de "Che" um filme que vai desiludir os espectadores que entrarem à espera de um "biopic" convencional (sobretudo levando em conta que, para já, apenas vão poder ver "meio filme"). Mas convencional é a última coisa que se deve esperar de Soderbergh hoje, mesmo nos seus filmes de estúdio, e aqui ele faz corresponder a esse retrato do "revolucionário em construção" um "filme em construção permanente", que dirige o seu espectador não apenas através do processo da criação do ícone-Che como também do processo da criação do próprio filme, que se parece montar aos poucos à nossa frente, enquanto o vemos. Isso apenas confirma a singularidade do percurso de Steven Soderbergh como um dos mais estimulantes autores a trabalhar no cinema contemporâneo, mesmo quando as suas apostas não são inteiramente ganhas - e "Che" "arrasta-se" um pouco demais, parece-nos por vezes mais interessado na teoria e nesse processo torna-se um pouco árido, insuficientemente humano. Mas isso não invalida que seja apaixonante ver um filme que não tem problema nenhum em correr todos os riscos que os outros evitam.
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