Alvess (1939-2009), vida de artista
Foi uma das exposições de 2008, aquela que Alvess, falecido domingo, em Paris, na sequência de um cancro, realizou no Museu de Arte Contemporânea de Serralves (MACS), no Porto. A razão desse sucesso deveu-se sobretudo ao facto de ter sido ali, nesse instante, que a sua obra foi revelada a um público mais alargado. Até aí os trabalhos por si realizados eram praticamente desconhecidos, tendo sido apresentados em mostras colectivas e dispersas no tempo. A descoberta deste nome secreto e singular, como o caracteriza João Fernandes, director do MACS, foi um acontecimento. Pouco tempo antes de morrer, Alvess dizia-lhe: "Fiz 70 anos, tive a minha vida de artista." Uma actividade que, sublinha o também comissário da antológica, não era praticada como uma profissão, mas antes assumida como uma "condição" distante da mundanidade hoje tantas vezes associada ao contexto artístico.
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Foi uma das exposições de 2008, aquela que Alvess, falecido domingo, em Paris, na sequência de um cancro, realizou no Museu de Arte Contemporânea de Serralves (MACS), no Porto. A razão desse sucesso deveu-se sobretudo ao facto de ter sido ali, nesse instante, que a sua obra foi revelada a um público mais alargado. Até aí os trabalhos por si realizados eram praticamente desconhecidos, tendo sido apresentados em mostras colectivas e dispersas no tempo. A descoberta deste nome secreto e singular, como o caracteriza João Fernandes, director do MACS, foi um acontecimento. Pouco tempo antes de morrer, Alvess dizia-lhe: "Fiz 70 anos, tive a minha vida de artista." Uma actividade que, sublinha o também comissário da antológica, não era praticada como uma profissão, mas antes assumida como uma "condição" distante da mundanidade hoje tantas vezes associada ao contexto artístico.
Uma obra assim, fora do mercado, descoberta tardiamente, levanta, desde logo, uma série de questões, como a relacionada com a sua cotação - ao que se sabe, Alvess, artista sem galeria, está apenas representado nos acervos da Gulbenkian e de Serralves, nunca tendo vendido um trabalho a um coleccionador privado. Outros problemas podem ser colocados, nomeadamente de ordem histórica: como ler o percurso de alguém que escolheu guardar os seus objectos em casa e apenas revelá-los numa exposição institucional? É o museu que acaba por legitimar a obra, saltando dessa forma muitas das habituais etapas de um percurso artístico; contudo, neste caso, a opção por um cultivado secretismo, por uma metódica invisibilidade, escolha pessoal inspirada por certos modelos de antiarte - dadá, fluxus -, levou a um prolongado esquecimento. Por esses motivos, este é também um caso bastante distinto daquilo que se passa hoje em dia com a relação cada vez mais próxima entre museu, escola e galeria.
Alvess, nota João Fernandes, usando algumas linguagens dos artistas do seu tempo - recorde-se que foi bolseiro da Gulbenkian, em Paris, cidade onde se exilou -, abordou criticamente quer a pintura, quer a escultura, fazendo-as alvos da irrisão. Essa dimensão caricatural, desconstrutiva, atingia, apesar de uma certa contradição, o próprio museu e, por extensão, o meio da arte. Pode por isso afirmar-se que, de algum modo, Alvess, confrontado com o dilema da inclusão e exclusão característico do sistema artístico, escolheu uma posição de distanciamento, certamente a que melhor lhe convinha para prosseguir com coerência e discrição o seu trabalho. E há uma imagem que nunca o abandonará, a de um certo estilo parisiense, porventura démodé, que incluía sempre chapéu, bigode aparado e uma boquilha para saborear cada cigarro.
Manuel Nogueira Alves - tendo adoptado mais tarde o nome de Alvess para corresponder, não sem ironia, à pronúncia afrancesada do seu apelido, nasceu em Viseu, em 1939. Em Lisboa frequenta o curso de Belas-Artes na Sociedade Nacional de Belas-Artes. Vai para Paris, em 1963, ali trabalhará numa tipografia, na Delegação do Turismo Português e numa agência de publicidade, podendo ver-se ecos dessas profissões no seu trabalho, nomeadamente as proximidades à linguagem gráfica.
Na capital francesa encontra alguns artistas e críticos portugueses que ficariam sempre atentos à sua obra, como são os casos de Lourdes Castro, Pedro Morais, José Luís Porfírio e José David. Entre as exposições em que participa, destaca-se a VI edição da Bienal de Paris (1969), realizada no Musée d'Art Moderne de la Ville de Paris, evento a que regressará dois anos mais tarde, numa aparição selvagem, com a performance As 7 horas de Alvess, na qual corre uma hora por dia durante uma semana nas salas de exposição, "caricaturando a condição do artista como ‘atleta de competição'". O artista chega ainda a integrar, a convite de Ernesto de Sousa, a mostra colectiva Alternativa Zero: Tendências polémicas na Arte Portuguesa Contemporânea (Lisboa, 1977).
A exposição antológica de Serralves, inaugurada há um ano e co-comissariada por João Fernandes e Sandra Guimarães, permitiu descobrir as diversas facetas de um percurso solitário e absolutamente singular, que abarcava inúmeros territórios: pintura, escultura, arte postal, performance, fotografia e desenho. A instituição do Porto conseguiu reunir um importante núcleo de trabalhos para a sua colecção; sabe-se, contudo, que Alvess ainda tinha em seu poder mais de 100 telas, o que volta a colocar de novo o problema do valor comercial do seu trabalho - será agora o mercado a estabelecer as regras? É que, mesmo depois da mostra de Serralves, o artista procurou sempre evitar contactos com galerias e coleccionadores particulares. Autor de uma obra cuja força maior desta se encontra na pintura, nomeadamente a realizada entre meados da década de 60 e o início dos anos 1980, e numa série de papéis datados de 1995, em ambos casos verdadeiramente singulares na sua sobriedade e rigor compositivo, Alvess é um daqueles nomes inesquecíveis, não só por tudo aquilo que fez, mas também pelo facto de nos ter permitido questionar muitas certezas supostamente adquiridas.