O último acto
A bandeira americana que há dois ou três filmes atrás Clint Eastwood mostrava hasteada no topo do Monte Suribachi, durante a tomada de Iwo Jima, em "As Bandeiras dos Nossos Pais", está agora no alpendre de Walt Kowalski, a principal personagem de "Gran Torino". Há bandeiras americanas em muitíssimos filmes de Eastwood, claro, e seria interessante estabelecer um inventário das circunstâncias em que elas aparecem - por exemplo, num "western" dos anos 70, a servir de enfeite a uma forca.
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A bandeira americana que há dois ou três filmes atrás Clint Eastwood mostrava hasteada no topo do Monte Suribachi, durante a tomada de Iwo Jima, em "As Bandeiras dos Nossos Pais", está agora no alpendre de Walt Kowalski, a principal personagem de "Gran Torino". Há bandeiras americanas em muitíssimos filmes de Eastwood, claro, e seria interessante estabelecer um inventário das circunstâncias em que elas aparecem - por exemplo, num "western" dos anos 70, a servir de enfeite a uma forca.
As histórias e as personagens de Clint Eastwood nunca são "simbólicas", mas evoluem sempre numa profusão de símbolos. Quase sempre, a questão é: o que fazer com eles? Era, parcialmente, a questão de "Bandeiras dos Nossos Pais", é uma questão fundamental em "Gran Torino", filme sobre a transmissão de um legado, sobre a passagem de um testemunho. Não necessariamente uma bandeira (que aqui, ao contrário do que sucedia no filme de Iwo Jima, assinala um encolhimento territorial, como que o "last stand" de um velho americano morador de um bairro de Detroit progressivamente "ocupado" por imigrantes oriundos do sudoeste asiático) mas qualquer coisa que se logo à partida não está desprovida de propriedades simbólicas (a Ford, para onde Kowalski trabalhou a vida inteira, é a Ford) é transformada no decurso do filme em algo de igualmente poderoso: um belo Ford Gran Torino de 1972, a herança mais vistosa que Kowalski tem para passar (há outra, mais discreta, uma medalha de bravura conquistada na Guerra da Coreia, especialmente significativa nos planos finais, quando a vemos pendurada na camisa do miúdo asiático).
Legado
Mas a questão é: a quem passar isto tudo? Quem é que Kowalski reconhece como depositários meritórios deste legado? O reconhecimento é o problema fundamental de uma personagem que desde o princípio se reconhece em muito pouco do que de real e palpável existe à sua volta: não se reconhece na família, nos filhos tão presos a um estereótipo "middle class" (até andam de Toyota e tudo, Kowalski só pode levar a mal: a indústria automóvel japonesa é o grande inimigo de Detroit), na neta cheia de "piercings" e penduricalhos, geração MTV cuspida e escarrada, nem se reconhece na religião ou nos sermões estereotipados que o padre lhe dá sobre o "mistério da vida e da morte", e muito menos se reconhece na vizinhança, povo estranho de hábitos e língua incompreensíveis. A resposta é surpreendente, e é em função dela que Clint pode carregar a fundo no reaccionarismo resmungão de Kowalski - a pouco e pouco, encontra naquela família hmong sua vizinha aquilo que não encontra em mais lado nenhum: um sentido de identidade que tenta subsistir, numa espécie de comunhão com a tradição, contra tudo o que a ameaça de desintegração. No fundo, é isto que Kowalski "vê" nos seus vizinhos asiáticos, e é nisto que ele se reconhece: o drama deles é muito parecido com o seu.
Evidentemente, na composição de Kowalski Clint Eastwood joga com aspectos desde cedo associados às suas personagens cinematográficas. Fala-se de "Dirty Harry" pelo mais superficial (e durante as primeiras sequências Clint carrega nesses aspectos com o gozo e o à vontade de quem sabe que não perdem, os espectadores, pela demora), podia-se falar do "Outlaw Josey Wales", onde perante uma América em desagregação (a Guerra Civil) a sua personagem se encontrava no meio dos índios, outro "povo antigo" a tentar guardar a sua identidade. A veterania de Kowalski, a sua passagem pela guerra da Coreia, os horrores que presenciou e cometeu (e nunca mais conseguiu esquecer) aproximam-no do William Munny do "Imperdoável" - a desmontagem do "heroísmo" e das suas coberturas mi(s)tificadoras, que teve nesse filme o ponto mais alto e mais evidente, também percorre "Gran Torino" (o "it's a hell of a thing killing a man" de "Imperdoável" tem aqui um correspondente directo: o "you don't wanna know" que Kowalski responde ao miúdo que lhe perguntava pela "sensação de matar um homem"). E, a par da justiça (grande tema eastwoodiano), os tema da salvação e da redenção, que têm ocupado tantos filmes de Clint dos anos 90 para cá (aqueles só aparentemente mais anódinos, "True Crime", "Bloodwork", mas também "Million Dollar Baby", com as suas conversas sobre religião, mais as heranças e as famílias "em substituição"). Há um vulcão interior em Kowalski, um vulcão que ele quer aplacar, num último gesto para fora, para os outros.
Depois, a paz. Mas não podemos estar muito seguros sobre isto: se foi Kowalski que salvou o miúdo hmong, ou se foi o miúdo hmong que salvou Kowalski. Ou, no fundo, se não é pela salvação alheia que as personagens eastwoodianas se salvam a si próprias. Eis, talvez, o principal legado de "Gran Torino", obra maior entre as maiores obras de Clint Eastwood.