Cristo nunca andou de sapatos
A meio de uma "manhã tórrida" de domingo, Suttree, o protagonista do homónimo livro de Cormac McCarthy (1933-), errando solitário pelo rio Tennesse, em Knoxville ("ora remando, ora deixando-se levar pela corrente"), avistando nas margens "velhos quadros de infância, jardins que conhecia ou conhecera outrora", encontra um evangelizador a baptizar pessoas nas águas do rio.
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A meio de uma "manhã tórrida" de domingo, Suttree, o protagonista do homónimo livro de Cormac McCarthy (1933-), errando solitário pelo rio Tennesse, em Knoxville ("ora remando, ora deixando-se levar pela corrente"), avistando nas margens "velhos quadros de infância, jardins que conhecia ou conhecera outrora", encontra um evangelizador a baptizar pessoas nas águas do rio.
Suttree aproxima-se, para obervar com um interesse por assim dizer indiferente. Um velho pergunta-lhe se já achou "o caminho da salvação" (é claro que não), se foi baptizado ("Só na cabeça"), convida-o a meter-se na água para uma "barrela completa". Suttree pergunta: "E a pessoa pode descalçar os sapatos?" Outro velho responde: "Jesus Cristo nunca andou de sapatos". E o primeiro finaliza: "Não há necessidade de molhar os sapatos [...]. Um fulano pode-se arrepender calçado ou de pés nus, tanto faz. Jesus Cristo não se importa."
A cena - nem mais nem menos relevante do que todas as outras que compõem o mosaico de sequências estáticas (dir-se-ia), e mais raramente extáticas, que é "Suttree" - dá-nos notícia de algumas características deste romance, por vezes aparentemente contraditórias: uma interpeladora vocação mítica, uma aspiração à transcendência, um vago burlesco lírico. A Suttree, a personagem, para ser uma espécie de prosaico Jesus Cristo de sapatos, de Knoxville, Tennessee, EUA, falta-lhe a virtude heróica e incómoda do proselitismo. Suttrre é uma espécie de Sócrates (o verdadeiro) sem ironia e sem discípulos (embora McCarthy não faça mal, aqui, o papel de Platão), um Ulisses sem astúcia e sem jeito para o comércio mundano e, já agora, também sem casa a que regressar. Suttree é um estóico sem convicção nem vaidade de o ser, alguém que rema mas mais frequentemente se deixa levar pela corrente. É talvez um místico sem doutrina e "Suttree", o romance, simbolista e barroco, paródico e realista, é o seu evangelho. Abundam nele os símbolos, os arquétipos e as analogias grandiloquentes.
Quarto romance publicado por McCarthy (originalmente em 1979), é o seu livro mais extenso e aquele que mais tempo de escrita lhe consumiu: pelo menos vinte anos (período durante o qual escreveu também e publicou outros três romances). Será igualmente o mais "autobiográfico", tomando por cenário a provinciana "metrópole" de Knoxville (onde McCarthy cresceu e passou parte da sua vida de adulto) e arredores. Não há em "Suttree" uma progressão dramática que lisonjeie a atenção do leitor, mas antes uma sucessão (não linear cronologicamente, nem evidente do ponto de vista da enunciação) de episódios, de quadros, da vida do protagonista entre 1950 e 1955. Cornelius Suttree é alguém que abandonou tudo - o privilegiado estauto social familiar, a mulher e o filho pequeno (que depois morre) -para viver solitariamente ao sabor da corrente (literal e metaforicamente). Não sabemos por que o fez, que idade terá, o que procura (se é que procura algo); sabemos que se abriga numa miserável casa flutuante no rio, que se dedica preguiçosa e altivamente à pesca à linha para arranjar os poucos tostões de que necessita para sobreviver, sabemos que esteve preso (e é quando encontra outra entranhável personagem deste livro, Harrogate, um adolescente fornicador de melancias), sabemos que vagueia melancolicamente sem destino nem premeditação, que confraterniza com pobres e marginais, humilhados e ofendidos, rameiras e travestis (mas não com banqueiros e corretores), com os quais é alheiamente generoso e bom. São anos "na companhia de larápios, desvalidos, celerados, párias, poltrões, tratantes, rústicos, sandeus, homicidas, tavolageiros, alcouceiras, marafonas, rascoeiras, salteadores, beberrões, bebedanas, borrachos e arquiborrachos, labrostes, lúbricos, vagabundos, bargantes e tantos outros debochados, vá lá saber-se qual deles mais perverso" (continuo sem saber se a por vezes estonteante riqueza lexical de McCarthy tem origem no seu gosto afiado pela descrição minuciosa e exacta, seja da fauna ou da flora, seja de ofícios ou artefactos, ou se é o inverso).
Mas não se prende nem se deixa prender este artista da desistência e da fuga passiva e, no final, Suttrree levanta o polegar à beira de um estrada e abandona Knoxville.
Sim, talvez "Suttree" seja o relato do purgatório do protagonista, a história de um sacrifício purificador, iniciático, uma ressurreição, uma triste e suprema ascensão ao "imenso vazio do mundo mais além". Cornelius Suttree, diz McCarthy, "tomara como talismã o singelo coração humano dentro de si. Ao percorrer a ruela pela derradeira vez, sentiu que tudo se ia desprendendo da sua pessoa. Até já nada restar do seu ser de que se pudesse desapossar. Tudo desaparecera. Nenhuma pegada, nenhum vestígio. O rasto a delir-se além, na Front Street, onde as coisas que ele fora jaziam como sombras de papel, uma ou outra aqui, cada vez mais raras. Depois disso, nada. Alguns boatos. Palavras vãs lançadas ao vento. Velhas notícias que demoram anos a viajar e não merecem crédito." E aqui abandonamos com pena o livro de McCarthy, mas não sem antes tirarmos o chapéu ao tradutor.