Manuel Salgado: “Não me estou a ver a voltar a fazer projectos de edifícios”
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Certamente. Desde 1974 que o meu trabalho está essencialmente ligado às questões do urbanismo, da encomenda pública, tendo tido como clientes as câmaras municipais para fazer grandes edifícios ou grandes conjuntos de edifícios. Nunca tive muita encomenda privada. Se for ver projectos realizados por mim em Lisboa há três que se destacam - o Centro Cultural de Belém, os espaços públicos da Expo e o Hospital da Luz. Só este último é uma encomenda privada, e mesmo assim de carácter público. Privados tenho o hotel Altis de Belém, mais dois ou três edifícios e pouco mais. Colegas meus como Gonçalo Byrne, Carrilho da Graça, Aires Mateus ou Valsassina têm mais projectos em Lisboa. A mim sempre me interessaram mais as questões urbanísticos e a grande encomendas, os projectos de espaço público de dimensões relevantes.
O que mudou por se ter tornado vereador do Urbanismo?Ganhei outra capacidade de compreender como se faz cidade. Foi uma aprendizagem extraordinária perceber quais critérios e dificuldades de decisão dos serviços camarários. Todos nos interrogamos por que razão as coisas não se fazem, não andam. Estando-se cá dentro percebe-se porquê. Para já não sei quando sairei daqui. Gostava de concretizar os projectos camarários cujas sementes estou a lançar e isso não se esgota neste mandato. Se for convidado por António Costa estarei disponível para um novo mandato.
Ainda não foi convidado?A questão ainda não se colocou. No fim do próximo mandato terei 70 anos, não sei que capacidade de trabalho terei. Mas, se a tiver, será na gestão de projecto que tentarei exercer a minha profissão. Não me estou a ver a voltar a fazer projectos de edifícios ou de loteamentos. Não é isso que me estimula. Nunca será por aí que prosseguirei a minha actividade.
Dizia que agora percebe por que razão as coisas emperram na câmara. É porquê?Por múltiplas razões, das burocracias e das dificuldades em compatibilizar serviços diferentes com opiniões diametralmente opostas até toda a teia de questões jurídicas que se colocam na apreciação dos processos, e que tornam a decisão muito dificil. É indispensável, no futuro, que a máquina administrativa do município seja profundamente alterada para ter outra capacidade de resposta. Com a actual estrutura municipal não conseguimos gerar as receitas necessárias para reabilitar a cidade. E o tempo dos fundos europeus acabou. Há que fazer parcerias com a administração central e com os privados. O grande contributo que o município pode dar ao desenvolvimento da cidade é ligar pontas, estimular os privados a investirem, reduzir-lhes os custos de contexto.
Isso não é uma visão de direita? A autarquia não devia balizar a actividade dos privados?Fomentar não quer dizer não impôr balizas. Quem impõe regras do jogo tem de ser a câmara.
Discordo radicalmente. Houve várias críticas ao estudo do comissariado que foram levadas em conta e o projecto ficou menos ambicioso - no sentido em que tinha uma estrutura que recorria a um vultuoso empréstimo no Banco Europeu de Investimento que hoje não é viável -, mas não perdeu a ambição do ponto de vista dos objectivos. Foram identificados quatro projectos-âncora para dinamizar a Baixa e três deles estão a andar. O quarto, a instalação do Museu de Moda e Design no antigo Banco Nacional Ultramarino, na Rua Augusta, foi aprovado na câmara e está em apreciação na assembleia municipal. Inclui a abertura de uma Loja do Cidadão no mesmo imóvel. Apresentámos uma candidatura ao Quadro de Referência Estratégico Nacional juntamente com o Centro Português de Design, a Experimenta Design, a Modalisboa e a Trienal de Arquitectura - que, segundo sei, foi aceite - no sentido de atrair as indústrias criativas para a Baixa, para os espaços deixados vazios pela saída dos bancos. Trata-se de um conjunto de iniciativas que se articulam com este museu. Por outro lado, aprovámos muitos projectos de habitação para a Baixa, bem como vários hotéis.
Com a aproximação das eleições existe a possibilidade de a Assembleia Municipal, que é dominada pelo PSD, chumbar o museu e todos os outros projectos relevantes do executivo socialista. Como será possível governar a câmara até ao final do mandato nestas circunstâncias?Acredito que as pessoas estejam de boa fé e que tanto o museu como a venda de vários palácios municipais sejam viabilizados. Se se verificar que os projectos são sistematicamente chumbados, apenas por razões políticas, os eleitores terão de fazer o seu julgamento em Outubro próximo.
Santana Lopes pode vir a ganhar a Câmara de Lisboa?Cabe aos cidadãos julgarem. Eu gostava que não.
António Costa deve concorrer aliado com Helena Roseta? E com Maria José Nogueira Pinto?Tenho trabalhado muito bem com a vereadora Helena Roseta e sou muito amigo de Maria José Nogueira Pinto, mas não sou eu que tenho de me pronunciar sobre isso.
Os comissários da Baixa diziam que a construção de uma circular das colinas era essencial à reabilitação da Baixa. Ora essa via já não vai por diante...A grande contestação à circular relacionava-se com um troço que passava por baixo do Jardim da Estrela, e encontrámos alternativas para isso, nomeadamente o túnel do Marquês na ligação à Av. de Ceuta. Quando o comissariado encomendou medições da poluição sonora e atmosférica na Rua da Prata chegou à conclusão de que as condições eram ainda piores que na Avenida da Liberdade. É que as ruas estreitas com edifícios altos impedem a dispersão das partículas e do ar poluído. É uma situação insustentável. Há três semanas Portugal recebeu uma notificação da Comunidade Europeia alertando para o incumprimento das normas relativas à qualidade do ar e ao ruído. É preciso criar esplanadas na Baixa e paragens de transportes públicos. De retirar daqui o tráfego de atravessamento, aquele que usa esta zona da cidade para chegar a outros bairros. A proposta de alteração da circulação na Baixa está em discussão pública até ao final de Março e pode vir a ser melhorada. É preciso que os lisboetas interiorizem uma outra forma de circular na cidade.
Um dos grandes especialistas em transportes do país, Nunes da Silva, diz que o modelo da câmara não é viável.Outro grande especialista, José Manuel Viegas, considera que tem todas as condições para ser aplicado. Nunes da Silva é um técnico muito competente mas tem opiniões um bocado voláteis. Ele próprio entende que é importante retirar o tráfego de atravessamento da Baixa.
Não tem divergências com o presidente da câmara sobre esta matéria?Não. Ele tem o meu integral apoio.
Antes de entrar para a câmara já se levantava às 6h?Sempre me levantei cedo, mas agora acordo mais cedo. Começo a trabalhar em casa mal acordo - sento-me à mesa às seis, seis e pouco para escrever, porque quando chego à câmara a pressão é muito grande. A quantidade e diversidade de decisões que é preciso tomar por hora é impressionante.
Qual foi a decisão mais difícil que teve de tomar neste ano e meio?A relativa a dois edifícios na Duque de Loulé cujo proprietário já tinha autorização camarária de demolição. Eu achava totalmente errado. Felizmente na câmara houve um consenso para serem mantidos e o promotor imobiliário concordou.
Não conseguiu esse tipo de acordo para o edifício que a câmara não quer deixar construir no Largo do Rato.Aí acho que o projecto de arquitectura é bom. Por outro lado, independentemente dos direitos adquiridos o projecto cumpre toda a regulamentação urbanística.
A câmara já foi processada por não querer deixar construir o edifício depois de o ter aprovado no mandato anterior?Ainda não.
Como vê a cidade daqui a 20 anos?Francamente melhor. Se o projecto desta equipa vingar será uma cidade mais amiga das pessoas, com mais espaço público, melhores condições ambientais, mais desenhada.
A sociedade Frente Tejo vai conseguir ter pronto a tempo das comemorações do centenário da República?Acredito que até ao final do ano o espaço público do Terreiro do Paço esteja todo reabilitado e que até 2010 seja possível ter pronta a transformação da Ribeira das Naus. No Campo das Cebolas poderá haver atrasos. Os dois torreões vão ser libertos para outras actividades e provavelmente vai ser possível integrar a doca da Marinha [defronte da Casa dos Bicos] no espaço público.
O plano de pormenor da Baixa vai permitir demolições de edifícios considerados irrelevantes?Não. Mas era salutar se se cortassem os pisos dos edifícios que são acrescentos aos prédios originais.
Como autor dos espaços públicos do Parque das Nações como vê hoje esta zona da cidade?Há coisas que é preciso melhorar, embora a experiência seja acima de tudo positiva. Já deveria ter havido investimentos num centro de saúde, falta uma escola... Há falhas graves que têm de ser supridas, problemas de circulação rodoviária e um problema crítico de mobilidade. Se uma pessoa vive num extremo da Expo e quer apanhar o metro não tem transporte para chegar lá. Se calhar o metro devia ter mais estações.
E a densidade excessiva de construção?É uma questão que tem aspectos negativos mas também positivos, como a vitalidade da zona.
A obrigação que quer impor aos promotores imobiliários de fazerem 25 por cento de habitação a custos controlados nos seus empreendimentos não pode ser uma saída para escoarem o produto numa altura de crise?Exactamente. Os regulamentos que temos neste momento para aprovação estabelecem que nos casos em que os promotores desenvolvem programas desta natureza têm uma redução de 50 por cento nas taxas e têm também uma redução nas cedências à autarquia. Estamos a fazer um estudo para determinar qual o ponto de equilíbrio, tanto em áreas das habitações como em preços, para trazer de volta a classe média à cidade de Lisboa.
O aluguer não está incluído?Aí há experiências de outros países muito interessantes, como o aluguer de renda resolúvel, em que o arrendatário pode adquirir o imóvel ao fim de algum tempo. Aquilo que já pagou de renda funciona como entrada. Temos de criar uma cidade rejuvenescida, com uma mistura social que hoje não existe. Actualmente um quarto da população de Lisboa é muito pobre. Com esta crise o paradigma da promoção imobiliária foi posto em causa. E há empresas que não têm capacidade para realizar os projectos que lhes estamos neste momento a aprovar na câmara.
Deve voltar à sua vocação inicial, que é o de urbanizadora, mais do que de promoção de edifícios. Pode fazer o trabalho que as sociedades de reabilitação urbana deviam ter feito: fazer projectos para quarteirões, compatibilizar interesses, lançar iniciativas. O que resulta mal é quando se põe a construir.
“Não tenho impedimentos à apreciação de projectos que não os meus”Como gere no dia-a-dia a questão das suas incompatibilidades, uma vez que tinha em mãos vários projectos quando entrou na câmara? Se tiver de se pronunciar sobre um projecto de um antigo cliente seu, como o grupo Espírito Santo, o que faz?Quando tomei posse apresentei uma declaração de interesses, mostrando os projectos que tinha em curso em Lisboa e garantindo que enquanto em estivesse na Câmara de Lisboa as pessoas do meu atelier [do qual me desliguei] não fariam projectos para a cidade - coisa que nunca vi ninguém fazer. Isso foi extremamente pesado para eles, que têm de ganhar a vida e viram esta oportunidade de trabalho recusada. Tiveram de se orientar para outros mercados, nomeadamente para fora do país. Não tenho de estar a dizer que sou honesto: estruturalmente tenho a minha ética. Sejam os projectos de um antigo cliente ou de um amigo meu, são julgados rigorosamente com a mesma imparcialidade que os de qualquer outro munícipe.
Julgados por si?Os projectos são todos instruídos pelos serviços. Quando vêm ao vereador é já com propostas de decisão. Se o Grupo Espírito Santo amanhã quiser fazer um hotel em Lisboa, a última pessoa que tem de o autorizar sou eu - excepto se tiver uma dimensão tal que seja necessário levá-lo à reunião de câmara, e nessa altura são os 17 vereadores a decidir. Aliás, esse grupo apresentou um projecto para a Rua Rosa Araújo que a câmara chumbou, embora eu tivesse proposto a sua aprovação. Não tenho impedimentos relativamente à apreciação de quaisquer projectos, excepto aqueles de que fui autor antes de entrar para a câmara, que são analisados pelo presidente da autarquia.
“Lisboa tem capacidade negocial no alargamento do cais de contentores de Alcântara”O que pensa da expansão do terminal de contentores de Alcântara?Lisboa necessita de um porto e Alcântara é, na margem de Lisboa, o único local que permite a acostagem de navios de grande calado. Agora se me disserem que são não sei quantos camiões que vão circular pela cidade, ou que a obra vai destruir o equilíbrio ecológico do Vale de Alcântara, ou toda a zona das Docas - então respondo: não pode ser, então não quero porto. Defendemos que a gare marítima de Alcântara se torne um equipamento cultural e que a plataforma portuária defronte dela seja uma praça pública. Só haverá ampliação do terminal de contentores se uma parte fundamental da carga for transportada por via ferroviária e por barcaças.
Isso não está no contrato assinado entre o Governo e a Liscont..Estamos a trabalhar num protocolo que envolve a administração portuária e a Liscont no sentido de assegurar a transformação em espaço público da plataforma defronte da gare marítima. E a Liscont também não está interessada na oposição da Câmara de Lisboa, que tem por exemplo capacidade de negociar as entradas e saídas de veículos do porto de Lisboa. Não somos propriamente a Junta de Freguesia de Freixo de Espada-à-Cinta.