Zizek, o iconoclasta
Zizek revela-se menos um crítico da pós-modernidade do que sua consciência moral
Slavoj Zizek é, há cerca de uma década, o mais exuberante “enfant terrible” do ensaísmo internacional. Esloveno, de 59 anos, nascido e criado no antigo regime jugoslavo, este professor da Universidade de Liubliana (e que ensina um pouco por todas as grandes cidades do mundo), é autor de um pensamento anómalo num tempo em que o politicamente correcto faz a regra. Com a irreverência da excepção, confronta a formatação vigilante dos discursos e propõe-se desmascarar, nas suas justificações, o que defende ser a atitude ideologicamente cínica da pós-modernidade.
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Slavoj Zizek é, há cerca de uma década, o mais exuberante “enfant terrible” do ensaísmo internacional. Esloveno, de 59 anos, nascido e criado no antigo regime jugoslavo, este professor da Universidade de Liubliana (e que ensina um pouco por todas as grandes cidades do mundo), é autor de um pensamento anómalo num tempo em que o politicamente correcto faz a regra. Com a irreverência da excepção, confronta a formatação vigilante dos discursos e propõe-se desmascarar, nas suas justificações, o que defende ser a atitude ideologicamente cínica da pós-modernidade.
É assim, sem rodeios, que há já uns anos Zizek afirmava, por exemplo, que “a necessidade pós-moderna do recurso constante a processos de distanciamento irónico (uso de aspas, etc.) traduz o receio subjacente de que, sem o recurso a esses processos, a crença seria directa e imediata”. E é também assim que Zizek denuncia a necessidade de tolerância, de entendimento e diálogo como formas de chantagem liberal.
Do ponto de vista de Zizek (defendido por exemplo em “O Elogio da Intolerância"), não temos de querer entender os outros, não temos de querer dialogar. Precisamos, isso sim, de um código que nos ajude a garantir a convivência apesar da inultrapassável condição de desentendimento. Este é o ponto base de Zizek, claramente polémico. Do mesmo modo, recusa o multiculturalismo, que mascararia um racismo invertido, e o relativismo, que disfarçaria a interdição de convicções genuínas. No seu conjunto, as ideias multiculturalistas, relativistas, da diferença e da tolerância ou, numa palavra, o pós-modernismo, seriam, removida a máscara, nada mais, nada menos do que capitalismo disfarçado pela retórica do “rosto humano”. Pelo que a crítica ao capitalismo passe, segundo Zizek, pela crítica ao pós-moderno. Este não seria, no seu entender, mais do que o dispositivo ideológico que visa mascarar a desumanidade do capitalismo. Também por isso, Zizek reclama-se de um marxismo à antiga, pré-pós-moderno por assim dizer, de reinvenção leninista.
No livro que agora se publica, “A Monstruosidade de Cristo”, é retomada a leitura materialista do cristianismo que já fora tema de “A Marionenta e o Anão”. Se nessa obra Zizek descrevia a missão do apóstolo São Paulo como o trabalho de um leninista, ambos, ele e Lenine, inteiramente focados na organização dos respectivos partidos, neste novo livro (traduzido por Miguel Serras Pereira), Zizek confronta-nos com o fantasma da encarnação de Cristo. É essa encarnação a monstruosidade que Zizek tem em mente - não Cristo, mas Ele se ter feito homem, ter vindo ao corpo, à dor e à sensibilidade humanas para padecer dos mesmos sofrimentos, fazendo-nos perder a sua transcendência paternal, constrangendo-nos a assumir por inteiro as escolhas e a responsabilidade por elas. Vale a pena citar: “(...) Quando as pessoas imaginam toda a espécie de sentidos profundos porque as ‘assustam as palavras que dizem: Ele fez-se Homem’, aquilo que na realidade receiam é perderem o Deus transcendente que garante o sentido do universo, Deus como o senhor oculto que move os cordelinhos - em seu lugar encontramos um deus que abandona a sua posição transcendente e se precipita na sua própria criação, comprometendo-se com ela até à morte, o que faz com que nós, seres humanos, fiquemos sem qualquer Poder superior que olhe por nós, sem outra coisa que não seja o terrível fardo da liberdade e da responsabilidade pelo destino da criação divina e, portanto, do próprio deus. Não continuaremos hoje a recear demasiado todas as consequências dessas palavras?”
A partir desta excelente pergunta, Zizek aplica a sua prodigiosa capacidade de análise, aproveitando a obra de Chesterton, atravessando as paisagens cinematográficas de Hitchcock e Bergman, além, claro está, da evocação de muita filosofia de Hegel, muita psicanálise de Lacan e muita teologia difícil de avaliar. E ainda estimulantes reflexões como, por exemplo, as proporcionadas pelas recentes declarações do Papa Bento XVI em redor da racionalidade que, no seu entender, condicionaria o Deus da concepção dos cristãos, mas não o da concepção do Islão de uma absoluta transcendência divina. Ou, a finalizar, a subversão de uma ideia feita: e se estivesse o monoteísmo cristão fundado num ateísmo em vez do contrário? Escreve Zizek a propósito: “O ateísmo contemporâneo é uma espécie herética de cristianismo que retrospectivamente redefine o seu próprio género, estabelecendo-o como seu próprio pressuposto.” Estas são algumas das linhas por que se escreve uma maneira materialista e ateia de perceber o cristianismo.
Zizek subverte também o jogo da aparição pública do intelectual, ora candidatando-se à presidência da Eslovénia, ora documentando-se a si próprio em vídeos consultáveis no Youtube, e nos quais é possível, por exemplo, encontrá-lo sentado no chão, entre sanitas, a perorar sobre as dimensões alvitrantes do politicamente correcto, ou noutro lado qualquer a dissertar sobre as maneiras diferentes como as sanitas despejam as águas consoante estejamos em França, na Alemanha ou nos Estados Unidos. Os fatos Armani caindo em fino recorte sobre a elegância jovial dos pensadores-estrela, exactamente como os novos políticos europeus, dão lugar, em Zizek, à auto-iconografia irónica de um pensador iconoclasta. Mas tudo isto é linguagem e continua a ser, apesar de tudo, um exímio uso pós-moderno da linguagem, seja ela sobre o que for. Aliás, tal como as errâncias temáticas neste livro, feito de arabescos para possível desfrute do politicamente correcto, que pode bem ter no “fenómeno Zizek” o seu ponto de fuga e, por isso mesmo, a sua legitimição derradeira.
Talvez a ironia maior que este “fenómeno Zizek” nos reserva, última bolha do borbulhar cultural de uma Europa quase sem gás, esteja nesta linguagem poderosa com que nos religa, página sobre página, ao âmago da cultura contemporânea, e também às suas fontes religiosas, para assim julgar da nossa situação num mundo agitado. E julgando como julga, Zizek revela-se menos um crítico da pós-modernidade do que sua consciência moral.