Resta a memória da sua inteligência
Escrevia como ninguém e tinha “olho clínico” para os livros. Foi jornalista, era editora. Tinha 49 anos.
Se há coisa que Tereza Coelho nunca fez foi maçar o leitor ou embaraçar os amigos com a sua visão do mundo.
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Se há coisa que Tereza Coelho nunca fez foi maçar o leitor ou embaraçar os amigos com a sua visão do mundo.
Numa época em que ninguém se atrevia a fazer tal coisa, Tereza Coelho deu como título a uma notícia que publicou no PÚBLICO: “Menina de 7 anos grávida pela segunda vez”. E logo a seguir, escrevia o texto: “É sobre o concerto de Donovan na quartafeira em Lisboa, mas com outro título ninguém lia” (ver aqui).
Este jornalismo não era habitual em Portugal - eram os anos 90 -, Vicente Jorge Silva era ainda o director do jornal que fundara e Tereza Coelho, jornalista e crítica literária, editava o suplemento “Leituras” com Torcato Sepúlveda (1951-2008). Mais tarde a sua vida mudou. Ela que durante anos tinha acompanhado o mundo editorial como jornalista, passou para o outro lado da barreira.
Editora das Publicações Dom Quixote e do escritor António Lobo Antunes, Tereza Coelho morreu ontem de manhã, no Hospital CUF - Descobertas, em Lisboa, na sequência de complicações de uma pneumonia. Realiza-se hoje, às 10h, uma missa na Igreja de Santa Maria dos Olivais, em Lisboa, e o funeral parte às 10h45 para o Cemitério dos Olivais.
Considerada uma das melhores da sua geração, começou por escrever para o “Jornal de Letras”, onde assinava alguns trabalhos em conjunto com Alexandre Melo, e mais tarde voltaram a fazê-lo no semanário “Expresso”. Eram os anos 80, tinha um grande grupo de amigos (artistas plásticos, designers de moda, realizadores de cinema, escritores) e com alguns Tereza Coelho manteve sempre uma relação muito forte ao longo dos anos. O poeta Al Berto, o fotógrafo Paulo Nozolino, o artista plástico Pedro Cabrita Reis, a antropóloga Filomena Silvano.
“Ficamos hoje todos mais pobres sem a Tereza”, disse ontem Paulo Nozolino. “Ela tinha a capacidade de atrair os desenraizados e oprimidos, ouvindo-os horas a fio, oferecendo-lhes o seu sorriso. Escrevia. Trabalhámos várias vezes juntos, deu-me imensa gente a conhecer e partilhámos muitas noites até de madrugada. Resta a memória da sua inteligência, bondade e lealdade. E para mim algumas imagens inesquecíveis do seu corpo a atravessar o ar, os seus olhos de compaixão e amor”, acrescentou.
Foi por causa de uma entrevista que ela e Alexandre Melo fizeram a Joaquim Leitão quando este realizou o seu primeiro filme que se conheceram e ficaram amigos.
“Senti que havia do outro lado pessoas que haviam compreendido o filme, que tinham curiosidade e sabiam do que estavam a falar, o que foi algo que me impressionou”, explica o realizador.
Sempre que fazia um filme ou escrevia um argumento, Leitão ouvia com atenção o que a amiga tinha a dizer. “Era excelente jornalista, com um gosto e cultura extraordinários. Poderia estar em Nova Iorque a escrever na Vanity Fair e estaria perfeitamente enquadrada.”.
O psiquiatra Francisco Allen Gomes também confiava muito nos seus textos e no seu trabalho jornalístico. Foi por isso que quando fez o seu programa de televisão, em 1989, convidou Tereza Coelho para o ajudar. Mais tarde tiveram a ideia de fazer um trabalho sobre transgénero, foram apresentá-lo à editora; juntaram um dossier sobre pedofilia e, como não havia nada sobre o assunto em Portugal, acabaram por escolher esse assunto para o livro que escreveram juntos, A Sexualidade Traída (Âmbar).
Tereza Coelho foi também a primeira directora da revista feminina Elle em Portugal e escreveu o livro “Moda em Portugal nos Últimos 30 anos”, em co-autoria com Maria Assunção Avillez (edições Rolim). Ana Salazar lembra que Tereza era “ávida de conhecimento” e extremamente culta. “Foram tempos de troca de ideias, e ela era uma pessoa muito imparcial, sempre muito informada sobre todas as coisas”. Eduarda Abbondanza, directora da Moda Lisboa, considera que Tereza Coelho foi “uma pessoa fundamental para a moda em Portugal”. Era uma “crítica, fazia parte de um grupo de pessoas que a determinada altura existiu em Portugal que tinham uma voz que era lida, respeitada e reflectida.”
Jornalismo e missão
Tereza Coelho nasceu a 2 de Março de 1959, em Quelimane, em Moçambique, e veio para Portugal aos 14 anos. Viveu na Figueira da Foz e mais tarde veio estudar para Lisboa, onde se licenciou em Línguas e Literatura, na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Integrou a equipa que fundou o PÚBLICO e saiu depois para o Independente, para ser directora da revista “Livros”, distribuída com este semanário (que mais tarde passou a ser vendida em banca como “Os Meus Livros").
Abandonou a longa carreira de jornalista e de crítica literária e foi trabalhar com Zita Seabra na editora Bertrand. Mais tarde mudou-se para as Publicações Dom Quixote, onde se dedicava a editar António Lobo Antunes e outros escritores portugueses, como Mário Cláudio. Nesta editora publicou o polémico livro “Eu, Carolina”, de Carolina Salgado. Foi também tradutora de várias obras da escritora Marguerite Duras, de quem era amiga. É autora dos livros “António Lobo Antunes - Fotobiografia” (Publicações Dom Quixote, 2004) e “Tentação” (Publicações Europa-América) a adaptação do guião do filme “Tentação”, de Joaquim Leitão, para novela a pedido do produtor Tino Navarro. Tereza Coelho foi casada com o professor Eduardo Prado Coelho, de quem se divorciou. Era casada com o escritor e jornalista Rui Cardoso Martins, com quem teve dois filhos. Com Rui Cardoso Martins escreveu o argumento para uma longa-metragem, “Duas Mulheres”, que está actualmente em rodagem, com realização de João Mário Grilo.
Acreditava que, se fazemos um trabalho, temos obrigação de ser competentes. “Não sinto como ‘missão’ ser jornalista. Mas sou jornalista, gosto, e tenho que ser competente no meu trabalho. De resto, nunca percebi nem as pessoas que reverenciam os livros e a literatura nem, em geral, as pessoas que não têm uma relação descontraída com a cultura”, disse quando respondeu a um questionário da revista Periférica, no Verão de 2003. Importante: que “o crítico dê a sua opinião numa crítica, e não mace o leitor nem embarace os amigos com a sua visão do mundo”.
Olho clínico para livros
“Foi uma belíssima crítica literária numa altura em que a critica literária, em Portugal, tinha poder. Escrevia muito bem e sabia muito de livros”, lembra Clara Ferreira Alves, que trabalhou com ela no Expresso. “Era uma bela inteligência. Algumas vezes com uma lucidez incómoda, até para ela. Tinha um olho clínico para os livros, que é coisa rara”.
Nos últimos anos trabalhou com o António Lobo Antunes, “o único escritor português contemporâneo que realmente admirava. Deixei de ler crítica literária depois de ela ter deixado de escrever”, confessa a cronista do Expresso.
Para Vicente Jorge Silva, Tereza Coelho “era uma excelente pessoa, muito avessa a conflitos”, disse à Lusa. “Era desprovida de ambição no sentido de não ter necessidade de se pôr em bicos de pés para se afirmar.”
A crítica literária Helena Vasconcelos que trabalhou com ela desde os tempos em que Tereza Coelho foi directora da Elle reforça que Tereza teve “sempre o cuidado” de a levar para os sítios onde trabalhou. Apreendeu muito com ela, como aliás todos os que directamente trabalharam com Tereza. “Muito justa e sempre muito directa” é como a recorda Helena Vasconcelos, uma amiga “fiel e muito leal”.
José Prata, editor da Lua de Papel, e também ex-jornalista, trabalhou com Tereza Coelho desde 1989 na revista Os meus Livros. “Ela escrevia como ninguém; quero dizer, escrevia com carácter, não precisava assinar os textos para que soubéssemos que eram dela. E tinha obsessões próprias, fascinavam-na os comportamentos desviantes, as metamorfoses do corpo, os anões, os ossos.”
Refere que aprendeu sempre, “ela editava sem remorsos, limpava dos textos tudo que neles estava a mais, a lágrima fácil, o sentimento empolado, até deixar apenas o esqueleto”.