As famílias de Carla Galvão

Foto

Começamos a falar de uma família ficcional, acabamos numa família de carne e osso e a propósito desta voltamos à ficção.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Começamos a falar de uma família ficcional, acabamos numa família de carne e osso e a propósito desta voltamos à ficção.

Primeiro a filha sem nome a chamar coisas ao pai e ao mundo, amarrada a uma cama (daí o título da peça de Enda Walsh, "Acamarrados", que os Artistas Unidos estreiam quinta-feira, no Teatro da Malaposta, Olival Basto). Miúda com poliomielite, costas curvadas, a falar desbragadamente pelo pânico do silêncio e agarrada a um livro com a mão esquerda memória da mãe que morreu e lhe contava histórias de romance de cordel.

Personagem "perigosa" para se interpretar pois a actriz, Carla Galvão, que não é "nada franzina", como é que faz de "aleijada"? Nada de excessos, conta (porque nós não vimos), a ideia foi associar a "limitação física" à "limitação do mundo real", confinado aos romances corde-rosa.

Primeiro a personagem, depois a filha de mãe portuguesa e de pai cabo-verdiano, 27 anos, uma actriz que antes de pensar sê-lo andou de volta das ciências no liceu e a mexer na terra num estágio no departamento de Hortofruticultura do Instituto de Agronomia.

Agora que ela fala de Cabo Verde, lembramos o espectáculo que se estreou no final do ano passado, "Contos de Cabo Verde", com o Teatro Meridional. Era ela e um músico em palco, Fernando Mota, e Carla transfigurava-se em várias personagens com uma maleabilidade fora de série. Quando Miguel Seabra a convidou, deu por si a fazer uma pergunta tão equívoca quanto as que tem ouvido: "Tens a certeza de que não queres uma actriz cabo-verdiana?" Reparem: o rosto dela é tão plástico que num espectáculo sobre Cabo Verde enquadramo-la nesse território.

Porém, se algum realizador português perguntasse por uma Pocahontas....

E se nos cruzássemos com ela na rua, também podíamos dizer que é aquilo que é: portuguesa. "Tenho tido quase uma comédia de enganos.

Quem sabe que sou descendente de africano, e quem me conhece, sabe que tenho algumas coisas que tem a ver com o sangue de África. Mas já me têm acontecido estes equívocos.

Depois tenho um lado étnico que não é nada!" A rir, com aqueles olhos e boca enorme, conta que é normal as pessoas dizerem-lhe: "Ah, hoje pareces mexicana, ah que Pocahontas, ai que índia, ai hoje pareces..." E é normal ir a "castings" e o realizador dizer: "Ah, pois, tinham-me dito que eras preta, para este filme precisávamos que tivesses carapinha ou um nariz maior..." É a velha questão: "Não és preta, não és suficientemente branca." Porque ela está, diz, "no limiar".

Carla fala sobre isto com naturalidade não usa um tom queixoso, usa até um tom divertido, e mesmo quando reconhece que há coisas que a incomodam, fá-lo de forma pacífica.

Quero ser cabo-verdiana

Apesar das particularidades "étnicas" de que fala, Carla Galvão não deixa de ser daqueles casos simbólicos de uma geração, a dos filhos de imigrantes que nasceram em Portugal e têm "saudades de uma África que não conheceram", para usar uma expressão do cronista do PÚBLICO Kalaf Ângelo. Carla foi à ilha do Fogo apenas aos 19 anos, quando finalmente contactou a família paterna.

A questão da sua identidade não é a preto e branco. Por exemplo, nunca se falou crioulo em casa por vontade do pai, que "foi discriminado" logo quando chegou a Portugal, em 1973, e quis "defender" as duas filhas. "O meu pai não nos ensinou crioulo para as pessoas não fazerem imediatamente a associação a África. Eu queria aprender, ele dizia: 'Não, Carla, o teu português tem que estar limpo.' Estávamos nos anos 1980 e ainda por cima a minha mãe é branca." Carla adorava ouvir o pai falar ao telefone e os diálogos domingueiros lá em casa com os amigos cabo-verdianos, uns conversadores natos: "Não percebia nada, mas é uma vibração, parecem todos apaixonados pela vida." De maneira que apanhou "aquela musicalidade, as frases". Mas sempre que fala dos cabo-verdianos usa "eles", nunca o "nós". "Digo eles, sim. Porque foi sempre longe, uma relação à distância.

Quando vi no meu passaporte 'caboverdiana' pensei: 'Isto é uma fraude.' Porque tenho este passaporte, sou cabo-verdiana mas sou 'tuga', sou uma portuguesinha em muitas coisas. Este elemento Cabo Verde sempre foi uma coisa exterior, como se fosse um planeta diferente que ansiava ter. E falar crioulo, e ter aquela força, e saber pilar milho... Quero ser cabo-verdiana e não só no passaporte. Sinto que sou, em muitas coisas, mas na verdade só quando aprender crioulo e quero fazer isso é que vou dizer: nós, os cabo-verdianos."

Ligação à terra

Em casa não falou crioulo, mas por causa de uma característica muito cabo-verdiana "sempre que se quer falar do António, não se fala só do António, faz-se a árvore genealógica" quando se preparou para "Contos de Cabo Verde" pediu ajuda ao pai. Que hoje já percebe um "bocadinho" melhor a escolha do teatro esteve uns cinco anos sem ir ver a filha representar.

"Os meus pais são pessoas com um nível de escolaridade baixo" (o pai foi electrotécnico, a mãe doméstica) e, "como não tiveram a possibilidade de estudar e progredir, trabalharam para nós o conseguirmos. São de uma geração em que ser actor, músico, pintor, seja qual for a arte, é boémio".

Carla cantava fado desde os 11 anos, no bairro da Graça, em Lisboa, onde vivia e vive ainda hoje canta com um projecto Sá Fados e canta também outras coisas, blues, em coros, em projectos transe..., mas tinha pensado, como já dissemos, na Agronomia. Isso vinha da "ligação à terra", mas pela parte da mãe, que é de uma aldeia perto de Penalva do Castelo, Viseu. Era lá que passava as férias. "Arrancávamos batatas, regávamos, descamisávamos o milho, fazíamos tudo o que era actividades de agricultura. Não estávamos a ser exploradas, até porque tenho uma recordação muito engraçada: os meus pais começavam às 6h, eu e a minha irmã dormíamos até às 9h, deixavamnos o pequeno-almoço e depois íamos a pé até ao sítio onde eles estavam." Tinha pensado em Agronomia apesar da experiência de teatro no liceu a partir dos 16 anos, com um grupo dirigido por Paula Sousa, do Teatroesfera, que a convidou para um espectáculo profissional, tinha ela 19 quando se estreou. "Quando fiz essa primeira peça ["Abril"] percebi que não tinha hipótese, toda a gente à minha volta era muito experiente e de repente não entendia a linguagem deles, muito técnica. O facto de ter acesso à vida profissional fez-me pensar: não posso continuar aqui sem ter bagagem, senão sou papada."

Os ano de decisões

Esse foi um "ano de decisões": candidatou-se ao Instituto Superior de Agronomia e ao Conservatório. Quando soube que tinha entrado na escola de teatro, nem sequer foi ver os resultados do outro curso. Tinha ido a Cabo Verde pela primeira vez e, se havia dúvidas, a ilha do Fogo queimou-as.

"Vim com mais convicção ainda, com uma força... A ilha do Fogo é vulcânica e, quando vim, senti uma coisa química aquela terra potenciou aquilo que queria e o que não queria." Trabalhou depois com Maria Emília Correia era uma mulata a gingar em "Maçã no Escuro", de Clarice Lispector (2000), fez mais outros espectáculos com a encenadora, como "Menina e Moça", de Bernardim Ribeiro (2003), e trabalhou com outras companhias, mas a sua presença mais constante tem sido em espectáculos dos Artistas Unidos ("Baal", "Terrorismo", "Amor de Fedra"...) e do Teatro Meridional ("A Montanha de Água Lilás", "Por Detrás dos Montes", "À Manhã").

Dois grupos com linguagens tão diferentes no Meridional dá-se primazia ao corpo e à limpeza de cada um dos gestos, nos Artistas Unidos o investimento é na interpretação do texto e o corpo não é uma coisa marcada, descreve que os distingue assim: "São esquadrias diferentes: nos Artistas Unidos tenho uma régua, no Meridional tenho um esquadro." Nesse espaço que vai de um a outro grupo, Carla diz encontrar "coisas novas", apesar do medo, quase "pânico", de "fazer igual".

Mas a expressividade corporal que o Meridional exige pode ser usada nos Artistas Unidos, mais especificamente neste papel onde tem uma deficiência física. "O facto de ter o corpo tão sensível ajuda-me a chegar mais rápido às coisas que penso sobre o corpo desta personagem." Um corpo que tem limitações, como viu na série de fotografias de um "site" da Internet onde pesquisou sobre a doença e tentou perceber "como se comporta quem tem esta limitação". Não se pense que Carla Galvão é uma actriz do Método a escola criada por Lee Strasberg nos EUA que se define pela abordagem psicológica para a construção de uma personagem (o actor deve recorrer às suas memórias num processo que não anda longe da psicanálise).

Ela gosta de se "munir de ferramentas, de pensar sobre as coisas", mas acha que "aprofundar demasiado condiciona". "Resolver a equação toda muito bem condiciona-me porque, quando se está a interpretar, se se souber tudo há um nível da comunicação em que não se entra. Há coisas que só se consegue atingir através do inconsciente de quem recebe, e só se consegue fazer isso se não nos condicionarmos com o conhecimento pleno das coisas." Carla Galvão gosta de pensar que parte do seu imaginário para construir uma personagem e que um actor é alguém capaz de "fazer mutações" do seu "universo". "Como na genética, vamos sofrendo mutações. Todos os trabalhos vão potenciar as mutações do nosso universo e dão-nos as cores." É-lhe completamente estranha a ideia de levar a personagem para casa e também não acha interessante os espectadores verem-na a ela, pessoa, em palco gosta da construção, da composição. "Aquilo que me pica nesta luta é cada trabalho ser uma espécie de cultura" e isto para voltar à agricultura. Já que estamos nas imagens da biologia, ela explica-se melhor dizendo que na sua profissão gosta de "estar sempre a ver o mundo, a dissecar".

"É como se esta profissão fizesse aquele trabalho de laboratório em biologia, estar em constante dissecação das coisas. Isso abre-te a cabeça." Entretanto, ao fim de cinco anos o pai conciliou-se com "Por Detrás dos Montes", do Meridional, e já foi ver "A Fábrica de Nada", dos Artistas Unidos, que acabou de sair de cena. Tudo em família, diríamos porque estas são as duas casas às quais se sente vinculada (a dada altura até fala da dificuldade de manter "dois casamentos").

Numa como noutra é uma actriz "em construção".