Este homem transformou poesia em jornalismo

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Era 14 de Abril de 1930 e ele já tinha perdido tudo. A amante, a fama, a multidão que delirava ao escutá-lo, o vigor das cordas vocais e, pior ainda, a fé na Revolução. Só lhe faltava perder a vida. Pôs-se a jogar a roleta russa, impecavelmente vestido, como exigia a tradição da época, e sobre o coração descarregou o tambor de um revólver.

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Era 14 de Abril de 1930 e ele já tinha perdido tudo. A amante, a fama, a multidão que delirava ao escutá-lo, o vigor das cordas vocais e, pior ainda, a fé na Revolução. Só lhe faltava perder a vida. Pôs-se a jogar a roleta russa, impecavelmente vestido, como exigia a tradição da época, e sobre o coração descarregou o tambor de um revólver.

Deixou uma mensagem de despedida, decalcada de um poema que em tempos tinha dedicado à amante Tatiana Iakovleva. Com um verso principal: "O barco do amor desfez-se contra a repetição monótona da vida." 

Se até o momento do suicídio Vladimir Maiakovski (1893-1930) transformou em poema-notícia da morte, porque não pode ele ser conhecido como poeta-repórter da vida? Mais de 78 anos depois, um dos nomes principais do futurismo russo começa finalmente a libertar-se do anátema de propagandista da Revolução Soviética e a ganhar outra espessura. A isso obriga a leitura do livro "Night Wraps The Sky" (ed. Farrar, Straus and Giroux), publicado este ano nos Estados Unidos e organizado por Michael Almereyda, publicista, argumentista e realizador. O livro, de quase 300 páginas, compacta décadas de textos e ensaios sobre e do poeta georgiano (Maiakovski nasceu na Geórgia, quando o país ainda não tinha sido anexado pela URSS; apesar disso, era de origem russa e não georgiana).

Logo na introdução, recorda-se Maiakovski como o agitador e propagandista que também foi. E, precisamente por isso, sentencia-se a novidade: "O que ele verdadeiramente desejava era fazer da poesia uma ruidosa notícia de última hora", escreve Almereyda. Mais à frente, aparece um excerto de um texto do próprio poeta, "I, Myself" (1922), onde, no contexto de um desabafo, a tese de Almereyda é confirmada: "Tento conscientemente trabalhar como um jornalista de jornal. Artigo, título. Outros poetas bem tentam, mas não conseguem uma escrita jornalística concisa, limitam-se a publicar em suplementos socialmente irresponsáveis. A lírica de merda deles faz-me rir, porque é preguiçosa e só interessa às mulheres deles."

Um outro livro saído este ano, mas em Portugal, "33 Poesias" (Quasi Edições), também apresenta Maiakovski como poeta-repórter, ainda que de forma indirecta. Foi traduzido a partir de versões francesas, inglesas e brasileiras por Adolfo Luxúria Canibal, vocalista dos Mão Morta. E tem o mérito de ser a primeira edição de poesias de Maiakovski há mais de 30 anos em Portugal (sem contar com as colectâneas de Manuel Seabra, pela Relógio d'Água, que reúne vários autores e não somente Maiakovski, entre elas "Poetas Russos"). A tradução imediatamente anterior, "Autobiografia e Poemas", tinha sido feita por Carlos Grifo e editada em 1977 pela Presença, segundo consta na base de dados da Biblioteca Nacional.

Ferocidade, delicadeza, desafio

Analisando fotos de Maiakovski feitas por Alexandr Rodchenko, em 1924, Almereyda fala em "ferocidade proto-punk, delicadeza rude, alma em permanente desafio".

É um bom resumo da personagem. Maiakovski nasce em Bagdati, Geórgia, a 7 de Julho de 1893. Em 1906, depois da morte do pai, vai viver para Moscovo, com a mãe e as duas irmãs. Entra para o partido bolchevique e estuda na Academia Russa de Pintura, Escultura e Arquitectura. É David Burliuk, colega de curso, quem se surpreende com o seu talento literário e o decreta poeta. Serão eles os dois (mais Khlebnikov e Kruchenikh) que escrevem o manifesto futurista russo "Uma Bofetada no Gosto Público", em Dezembro de 1912.

Maiakovski tem então 19 anos e a energia louca que o vai tornar um comboio sem freio. Quando um dia mostra uma das suas mais famosas poesias, "A Nuvem de Calças" (escrita em 1914, publicada em 1915), à actriz Alexandra Rebikova, esta diz-lhe que não compreende algumas partes. E ri-se dele. Maiakovski contra-ataca: "Sou o maior poeta moderno, um dia ainda hás-de saber reconhecer isso."

Nessa época, conhece Lili Brik, a mulher da sua vida e musa de muitos versos (lugar que Tatiana Iakovleva chega a disputar). Lili é casada com Osip Brik, editor e conselheiro de Maiakovski. Mantêm uma relação a três durante anos, até Lili desistir do poeta. (Lili Brik é a mulher que aparece a gritar num poster de 1924 de Rodchenko, no qual o designer Matt Cooper se inspirou para, em 2005, criar a capa do álbum "You Could Have It So Much Better", dos Franz Ferdinand.)

Na Revolução de 1917, liderada por Lenine, ele, que sempre foi anticzarista, encontra o momento certo para propulsar a sua arte. Percorre a Rússia, a Ucrânia, a Crimeia e os Urales. Enche salas e auditórios para ler poesia política em voz alta. Com timbre possante e estilo tempestuoso, industria os muitos iletrados que o ouvem e não se coíbe de discutir com eles. "Consideras-te um proletário e um poeta colectivista, mas só sabes escrever 'eu, eu, eu'", atira-lhe um espectador em Moscovo. "Achas que Nicolau II era colectivista? Ele escrevia sempre 'nós, Nicolau II'...", responde Maiakovski.

Trabalha na Agência Telegráfica Russa, criando ilustrações e "slogans" para cartazes de promoção dos ideais do regime. Três mil cartazes, segundo o próprio. E edita, com Osip Brik, a revista literária e política "LEF". É uma estrela pop. Em 1925, lê pela primeira vez poemas aos microfones da Rádio Moscovo e a seguir faz uma digressão literária pelos EUA e México (fica alojado em casa dos comunistas Diego Rivera e Frida Kahlo).

Num texto de 1922, reproduzido em "Night Wraps The Sky", o poeta Osip Mandelstam explica que Maiakovski estava perfeitamente consciente da complexidade da poesia, mas tinha o ideal de a fazer chegar a toda a gente. "Empobrece a sua poesia, manda à vida tudo o que seja incompreensível, tudo o que exija da audiência a mínima formação poética."

Em grande medida, diz Adolfo Luxúria Canibal ao Ípsilon, a poesia de Maiakovski "é fruto da sua própria reflexão sobre o papel social da arte, e da poesia, e é esta reflexão contínua que o leva ao depuramento objectivo, ao seu 'carácter jornalístico'".

No prefácio de "33 Poesias", o músico explica que a poesia de Maiakovski se "escancara à vida moderna e aos seus atributos: a cidade, a rua, a multidão, as máquinas, as luzes artificiais, os fumos, todas as angulosidades da civilização industrial e das falas do dia-a-dia".

Coisa que está mais ou menos presente em todo o modernismo poético. Ainda assim, no poeta georgiano essa "emergência do quotidiano objectivo" - expressão de Luxúria Canibal - é permanente. "É uma escrita muito objectiva, que tenta depurar-se do sentimentalismo, alimenta-se sobretudo dos factos quotidianos, da vivência urbana, longe da tendência para a abstracção psicológica e para o bucolismo então em voga", diz.

Exemplo disso é a poesia "Ser bom para com os cavalos", que aparece no volume da Quasi, sobre um cavalo que escorrega numa calçada coberta de gelo e que provoca o riso da gente da rua. "É o 'fait-divers' elevado a material poético ou de como a poesia pode relatar o facto jornalístico mais básico", observa Luxúria Canibal.

Montagem e cinema

É preciso ver que Maiakovski não foi apenas poeta. Escreveu 13 volumes de poesia, teatro e prosa. Um terço dessa produção são textos sobre a pátria e a política, outro terço poesias sobre a Revolução Bolchevique e o resto são poesias e peças de teatro e guiões satíricos sobre "a procura do amor e os desencantos amorosos, a paixão pela vida e a desolação face a um mundo hostil, o desejo em atingir o absoluto da experiência humana e a raiva contra a sua própria impotência" - analisa Patrícia Blake, especialista em literatura russa e crítica da revista "Time", citada em "Night Wraps the Sky".

Em qualquer um desses géneros literários, o poeta usou quase sempre o mesmo estilo. A saber, segundo Almereyda: "Pontos de vista inconstantes, ritmos de montagem alucinantes, transições surpreendentes, pressa em estabelecer ligações entre ideias abstractas e pormenores reais muito concretos" - características comuns ao jornalismo, assinale-se.

O editor de "Night Wraps The Sky" entende até que aquele estilo influenciou o cinema de Sergei Eisenstein, Alexander Dovzhenco e Dziga Vertov. A obra-prima de Vertov, "O Homem da Câmara de Filmar" (1929), é "definitivamente maiakovskiana", garante.

Seguindo pistas do livro americano, é possível encontrar vários herdeiros legítimos do louco futurista. O estilo jornalístico de Maiakovski seria seguido, mais de 30 depois da sua morte, por poetas americanos como Allen Ginsberg, Kenneth Koch e Frank O'Hara. "Apaixonaram-se por ele, absorvendo técnicas (a quebra de versos longos, o uso flexível do "eu" e do "tu") e a inquietude que mistura no sujeito poético política e personalidade, confissão e reportagem", escreve Almereyda. Ao Ípsilon, Adolfo Luxúria Canibal confirma, "com as devidas distâncias", Ginsberg como um descendente do poeta-repórter Maiakovski. E na mesma beat generation encontra também Richard Brautigan. Europeus, apenas Henri Michaux.

O comprometimento político do poeta pode ter determinado o esquecimento público que sofreu durante décadas. Daí, portanto, a importância de livros como os dois de que aqui se fala. Ao reinterpretarem, reabilitam.