Contra o esquecimento
Sim, leram bem: "documentário animado" é a expressão exacta que o cineasta israelita Ari Folman usa para descrever "Valsa com Bashir". Documentário, porque não há aqui ficção, apenas a viagem de um homem ao interior de si próprio para tentar perceber porque é que não reteve memórias absolutamente nenhumas do seu serviço militar no Líbano, nem do massacre falangista dos campos de refugiados palestinianos de Sabra e Chatila.
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Sim, leram bem: "documentário animado" é a expressão exacta que o cineasta israelita Ari Folman usa para descrever "Valsa com Bashir". Documentário, porque não há aqui ficção, apenas a viagem de um homem ao interior de si próprio para tentar perceber porque é que não reteve memórias absolutamente nenhumas do seu serviço militar no Líbano, nem do massacre falangista dos campos de refugiados palestinianos de Sabra e Chatila.
Esse homem é o próprio Ari Folman (embora o seu nome, ao contrário dos outros intervenientes, nunca seja dito) e "Valsa com Bashir" é uma espécie de reencontro com o seu próprio passado, de investigação quase policial para perceber como e porquê ele reprimiu as suas memórias do Líbano. Ao mesmo tempo, Folman usa a sua experiência como ponto de partida para uma exploração existencialista do modo como a questão palestiniana afecta a própria natureza da sociedade israelita. O Holocausto paira por ali (os pais de Folman eram sobreviventes dos campos de concentração, o massacre de Sabra e Chatila não anda longe do genocídio cego e fundamentalista) e o "apagar da memória" (não é só o realizador que não tem memórias do massacre) pode ser lido como uma incapacidade de assumir a passividade de meros observadores que nada fizeram para que ele se repetisse. Como, então, visualizar aquilo de que não nos recordamos? Como representar o "irrepresentável"?
É aí que entra o "animado" - "Valsa com Bashir" segue todo o percurso investigativo e formal de um documentário tradicional, com entrevistas a amigos, colegas de tropa, psicólogos e jornalistas, mas fá-lo não em imagem real, como num documentário tradicional, mas em animação, num equilíbrio precário entre a rotoscopagem (desenho a traço sobre imagem real) que Richard Linklater explorou em "Acordar para a Vida" e "A Scanner Darkly" e o fotorrealismo digital da animação mais tradicional. É como se Folman optasse por chegar ao mesmo sítio por um outro caminho (não necessariamente um atalho) que permite outras perspectivas, outros pontos de vista, sem nunca fugir à questão central que trabalha todo o filme: a memória do passado, a necessidade de evitar o esquecimento para que as coisas não se repitam, os desvios que o cérebro inventa para evitar confrontar-se com as recordações mais difíceis.
"Valsa com Bashir" é um dificílimo exercício na corda bamba que se desequilibra a espaços mas que ganha tensão à medida que as viagens e as conversas de Folman vão descobrindo até onde a sua memória foi reprimida, para nos deixar, no final, a fazer a pergunta que o próprio realizador se deve ter feito às tantas: como foi possível ter esquecido? O mais duro não é que Folman faça a pergunta: é a resposta que lhe dá.