O extremo exercício da beleza
Quando há tempos correu que iria ser publicado um novo livro de Herberto Helder, alguns de nós, suponho, entrámos em estado de alvoroço, de espera confiante e jubilosa. Não como quem espera uma qualquer cansada e gasta novidade, uma dessas novidades já vistas ou já lidas que nos propõem como o novo.
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Quando há tempos correu que iria ser publicado um novo livro de Herberto Helder, alguns de nós, suponho, entrámos em estado de alvoroço, de espera confiante e jubilosa. Não como quem espera uma qualquer cansada e gasta novidade, uma dessas novidades já vistas ou já lidas que nos propõem como o novo.
Mas como quem tem a certeza que o livro lhe trará a incorruptível alegria de uma "inóspita beleza" (196): "amo-te como se aprendesse desde não sei que morte,/ ainda que doa o mundo, a alegria." O livro chegou e, de novo, mais uma vez, o velho arqueiro fechou os olhos, disparou e acertou. A flecha fica a vibrar no centro do alvo. O livro aí está, chama-se "A Faca Não Corta o Fogo" e traz um subtítulo "súmula & inédita" (em itálico), que nos remete para um título de Herberto Helder de 2001, "Ou o poema contínuo -súmula", e nos promete inéditos. De facto, este novo livro reedita a feroz escolha que o autor fizera da sua obra e os protocolos de apresentação dos livros e dos poemas. Só que emenda essa selecção acolhendo agora a primeira das "Cinco Canções Lacunares" e o(s) poema(s) de "Brancos Arquipélagos".
Este último livro era formado por corpos poemáticos, sem título e separados por asterisco. Como o asterisco separa poemas em "Ou o poema contínuo -súmula" e essa regra se mantém agora, o desaparecimento dos asteriscos na transcrição de "Os Brancos Arquipélagos", em favor de um intervalo maior de branco, sugere-nos que se trata de uma forma de "poema contínuo". O livro "Súmula" terminava com um poema inédito ("Redivivo. ...") que desaparecia na edição de "Ou o poema contínuo" (2004), que vinha ocupar o lugar de "Poesia Toda". Esse poema reaparece agora não no fim, mas integrado no livro inédito que como é regra se intitula entre parêntesis e em itálico, apenas no fim dos poemas que o compõem: "(a faca não corta o fogo)", título que do livro inédito viaja para ser o título deste volume agora editado.
O que é que então temos entre mãos, dedos e unhas? Ou na boca, como a colher? (Lembram-se de "A colher na boca"?) Acontece que o livro até agora inédito se edita nas páginas de um livro em que forma a última sequência de poemas de "Ou o poema contínuo-súmula" que entretanto perde esse título e toma o desta sua última sequência. Assim, essa mutação titular é um sinal da singularidade do livro: por um lado, dá a ler o novo livro como tão-só a mais recente continuação desse macropoema, que se poderia chamar "Herberto Helder: Ou o poema contínuo"; por outro lado, o novo livro retroage sobre a obra anterior tão poderosamente que altera a selecção dela feita e lhe impõe o seu título.
Finalmente, a sequência de poemas "A Faca Não Corta o Fogo" apresentase justamente como uma forma de poema único e contínuo, através de um apertadíssimo e libérrimo jogo de retomadas e variações.
Na capa do livro e no fim dos poemas, esse título, "A Faca Não Corta o Fogo", é a transformação de uma frase que nos é apresentada como (a tradução de) um "provérbio grego" e citada em epígrafe na abertura dessa última sequência de poemas -"Não se pode cortar o fogo com uma faca". O provérbio diz uma impossibilidade prática (práxica ou pragmática) universal: o conjunto formado pelo universal dos agentes não pode - não se pode - realizar uma determinada acção ou operação - cortar o fogo - com um determinado instrumento -uma faca -destinado precisamente a executar, em geral, essa acção. A impossibilidade que o provérbio enuncia oferece-se como uma sabedoria que radica numa experiência comum. Dito de outro modo, o provérbio formula uma impossibilidade dos humanos (antropológica), mesmo se ela radica numa incompatibilidade física entre faca e fogo que impede que com uma faca se realize, neste caso, a função para a qual as facas foram produzidas e destinadas. A frase título de Herberto elide a impossibilidade antropológica que se afirma na frase negativa do provérbio. Graças a essa elisão, é como se "a faca" e "o fogo" se tornassem os protagonistas directos dessa (não-)relação, os actores práticos e rituais, mágicos e míticos dessa cena de um "não". A frase passa a dizer essa experiência, nova e surpreendente de cada vez que acontece, de uma mútua inconveniência física, elementar, primordial ou arcaica.
Herberto Helder é decididamente um nosso "extremo contemporâneo", se com isto eu puder dizer que, na teia ou na rede da nossa contemporaneidade, ele é um dos "lugares" mais remotos e excêntricos.
Em curto e grosso, ele é e não é nosso contemporâneo. Inactual e intempestivo, ele é a diferença e a intensidade de um sistema de relâmpagos que instaura a "heterogeneidade do contemporâneo" e por isso se liberta e nos liberta dos estereótipos da nossa época.
Nestes poemas que insistentemente se apresentam como gestos que mostram a sua poética e figurações que a representam, que surgem, por vezes, como "cenas de escrita", é constante a tematização variante da relação entre o poema, a língua e a escrita. É a propósito da língua em que a poesia nasce que o poema diz e funda a não-contemporaneidade: "e me faz nascer numa língua/ que não é contemporânea, / que é arcaica, anacrónica,/ epiphânica,/" (183-4).
Que língua é esta? -uma língua desejada, "dentro da própria língua" (167), paradoxal -"uma língua analfabeta, plena" (167), "uma língua mestiça em que tudo está escrito" (161); "incrível" (168), "múltipla" (170) e "máxima" (137), uma língua em que se morre e fode, "a acerba e funda língua portuguesa, (170 e 175)/ línguamãe, puta de língua, que fazer dela?" (170). E assim um poema pode pôr-se a integrar numa espécie delirante de monólogo dramático, invenções e mudanças de ritmo sintáctico, formas do português antigo e do calão mais "baixo", fórmulas da poesia dos trovadores, um verso de Camões, um eco modificado de Pessoa, o fragmento interrompido de uma oração, e maneiras do português do Brasil (141-144). Camões é aliás e, compreensivelmente em Helder, quem mais intensamente reverbera (148, 164, 177, 191).
O poema encontra, sem a procurar, essa língua, mas não se limita a recebê-la; erra-a, desfigura-a, amplialhe jeitos. Reinventa-a: reforja o léxico e as relações vocabulares -"e com perícia artífice deixa no papel/o nexo estilístico entre/o terso, vívido, caótico e doce:/ e o escrito, o carbonífero, o extinto, / o corpo" (200) -perturba as formas e os ritmos sintácticos; produz imagens e figuras no regime das iluminações e radiações, que ferem a língua, alumiam e rasgam a boca, e os céus demasiado tranquilos das significações.
Assim, o poema está e não está contido na "língua autora/ rouca e múrmura" (176), acrescenta-lhe "a língua língua" (167), "a minha língua na tua língua em todos os sentidos sagrados e profanos,/ saliva, muita, e temperatura animal//" (183).
Acrescenta-lhe a boca, os dentes, a mão queimada, os dedos e as unhas, a bic que trabalha os dedos, "a bic cristal preta" (157, 174, 175, 198, 199), o sangue. "Mesmo sem gente nenhuma que te ouça/ poema intrínseco a português e dentes,/ a sangue desmanchado." Poeta obscuro, poeta hermético, se costuma dizer, e aqui, na construção da tradição de que ele próprio é o quase único representante, ele citará não só o "trobar clus" provençal -"ar resplan la flors enversa/ (...) ar resplan, e então resplende a flor inversa" (149) -, mas também o "styx" de Mallarmé (149). Herberto Helder é um extremo contemporâneo. Já o disse e procurei explicar o que queria dizer. Insisto, agora. Em tempos de perda da aura, ele restaura-a. Não como uma estratégia de sedução mas rangendo os dentes. Assim também, na sua poesia, a beleza torna-se de novo pronunciável. Mas o que é a beleza? Nessa não vou cair. Sabemos que a crítica contemporânea quase não usa a palavra, ou tem-na em grande desconfiança. Lá terá as suas razões. Conhecemos algumas. Em Herberto, indagando-se sobre que paixão tem, responde-se: "os grandes animais selvagens extinguem-se na terra, /os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem/ homens e mulheres perdem a aura/ na usura/ na política/ no comércio,/ na indústria," (205).
Será isto equivalente ao "desastre da beleza" (197)? Seja como for, posso apontar para a beleza: aqui, em "A Faca não Corta o Fogo", de Herberto Helder. Aqui, onde aliás o leitor encontrará o seu nome em várias línguas, "beltá beauty beauté, / a áspera beleza amarrada pelo sangue" (200).
"Ponham muito alto a música e que eu dance," (206) -ponham muito alto a música, parem, escutem e olhem como ele dança.