Canta-me histórias
Este ano, houve um filme resolutamente moderno que celebrou com um amor infinito a magia do cinema clássico: chamou-se "Wall-E" e conseguiu o milagre de contar uma história e criar personagens recorrendo quase só àquilo que é a essência do cinema. Imagens criadas por computador, sons, o mínimo de diálogo e um respeito enorme pela história do cinema bastaram para fazer de "Wall-E" uma das mais extraordinárias experiências que nos foi dado ver numa sala escura nos últimos anos.
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Este ano, houve um filme resolutamente moderno que celebrou com um amor infinito a magia do cinema clássico: chamou-se "Wall-E" e conseguiu o milagre de contar uma história e criar personagens recorrendo quase só àquilo que é a essência do cinema. Imagens criadas por computador, sons, o mínimo de diálogo e um respeito enorme pela história do cinema bastaram para fazer de "Wall-E" uma das mais extraordinárias experiências que nos foi dado ver numa sala escura nos últimos anos.
Nada faria prever que 2008 trouxesse um segundo filme que percorresse o mesmo caminho de modo diferente mas, na sua fé absoluta no poder do cinema, nos deixasse, literalmente, tão avassalados ao fim da sua projecção como a animação da Pixar.
"Austrália" é o mais recente OVNI do australiano Baz Luhrmann, que depois de ter estilizado Shakespeare nos nossos dias e de ter reinventado o musical clássico com essa ousadia incompreendida chamada "Moulin Rouge!", recria nos Antípodas os grandes romances épicos da Hollywood clássica. "Austrália" é "África Minha", "E Tudo o Vento Levou", "O Feiticeiro de Oz", "Rio Vermelho" e "Doutor Jivago" compactados num único, delirante, gloriosamente excessivo todo. É uma viagem iniciática, um western, um filme de guerra, um romance exótico, uma lição de história, um dramalhão romântico, à vez, ao mesmo tempo, alternadamente. É, no papel, a receita para um desastre megalómano, para uma espécie de mixórdia indigesta que quer ser tudo para todos e corre o risco de não ser nada para ninguém.
Mas isso é esquecer o pormenor essencial que faz de Luhrmann o cineasta que é: a sua convicção de que o cinema deve, acima de tudo, ser popular, arrebatador, grandiosamente "larger than life".
Sempre foi assim, desde "Strictly Ballroom", e não era agora que ele ia mudar. Não vale, por isso, a pena invocar que "Austrália" é derivativo, cheio de lugares-comuns, garridamente melodramático, previsível, simplista. É exactamente isso que Luhrmann quer ser - e quer sê-lo o melhor possível, e quer sê-lo com tanta convicção que não tenhamos outro remédio se não embarcar na viagem.
Luhrmann quer que larguemos o cinismo e nos deixemos outra vez encantar pelo mero poder narrativo do cinema; que nos esqueçamos das centenas de filmes que já vimos e que olhemos para o seu romance épico entre uma aristocrata inglesa caída de pára-quedas no meio do "outback" australiano e um vaqueiro local bruto como as casas como se nunca tivéssemos visto um filme antes. E se já tivermos visto, paciência, porque nunca o vimos exactamente como Luhrmann o fez e é como se fosse outra vez a primeira vez.
Acima de tudo, Luhrmann acredita no simples poder de contar bem uma boa história. O modo como ele o faz é pegando na tradição oral aborígene e colocando Nullah, o miúdo meio-aborígene meio-branco que está no centro da história de "Austrália", a contar ao espectador esta história - porque "contar histórias é o mais importante de tudo; é assim que guardamos sempre as pessoas que nos pertencem". É por isso que "Austrália" respira um perfume de grande saga aventureira, um pouco como um equivalente antípoda de "A Conquista do Oeste", onde a pequena história individual e a Grande História nacional godardianamente se cruzam e alimentam mutuamente, mas mantendo sempre a câmara focada nas pessoas, na "pequena história" que humaniza e dá sentido à grande.
Mais do que contada, no entanto, esta história é cantada - porque a cultura aborígene australiana se constrói à volta de canções legadas de geração em geração, porque o "leit-motiv" de "Austrália" é o "Over the Rainbow" que Judy Garland criou no "Feiticeiro de Oz" realizado em 1939, e é em 1939 que tudo se passa.
Não se espere de "Austrália" os delírios visuais hiper-barrocos que Luhrmann explorou à exaustão na sua "trilogia da cortina vermelha"; este é o seu filme menos maneirista, menos amaneirado, mais classicista, como quem acha que o rocambolesco desta narrativa é mais que suficiente. Não se espere de "Austrália" que os seus actores sejam mais do que arquétipos quase de BD a quem se pede apenas que lhes emprestem carne e osso; afinal, é uma criança que nos conta esta história, e uma criança de 1939. É, também, por isso que "Austrália" acredita a cem por cento naquilo que está a contar: porque o faz com o olhar inocente e deslumbrado de uma criança que descobre o mundo para lá do seu cantinho, e porque pede aos seus espectadores que, pelo espaço de três horas, redescubram a criança que há dentro de si e vejam o cinema como se fosse a primeira vez. Depois de "Wall-E", não houve este ano outro filme que o tenha feito com tanta fé e tanto amor como "Austrália".
Haverá certamente muitos cínicos que não resistirão a troçar da sinceridade de Baz Luhrmann e que descartarão "Austrália" como fita fora de tempo e fora de moda. Mas não é para esses que este filme foi feito - e eles é que ficarão a perder. "Austrália" é glorioso.