Reflexões daquele que em tempos foi o implacável Dirty Harry
Uma tarde destas, nos estúdios da Warner Bros., Clint Eastwood fez uma pausa num longo dia passado na mesa de montagem e deu uma volta até uma sala de projecção próxima. Ali, o seu passado, armado e perigoso, estava à sua espera e o cineasta estremeceu quando olhou para ele. "Quem é aquele rapaz?", perguntou, enquanto um sorriso fugidio atravessava o seu famoso rosto enrugado.
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Uma tarde destas, nos estúdios da Warner Bros., Clint Eastwood fez uma pausa num longo dia passado na mesa de montagem e deu uma volta até uma sala de projecção próxima. Ali, o seu passado, armado e perigoso, estava à sua espera e o cineasta estremeceu quando olhou para ele. "Quem é aquele rapaz?", perguntou, enquanto um sorriso fugidio atravessava o seu famoso rosto enrugado.
No ecrã estava Clint Eastwood por volta de 1971, olhando-nos detrás do cano de uma enorme arma com uma expressão de calma cruel. O papel era, naturalmente, o de Harry Callahan, o polícia de São Francisco com boa pontaria e péssimo feitio que abriu fogo em "A Fúria da Razão"/"Dirty Harry", filme que anunciou o moderno cinema americano de vingança. Ele continuou a disparar durante quatro sequelas ao longo de 17 anos, acumulando um número de vítimas que se iniciou na era de Nixon e que durou até ao ocaso da administração de Reagan.
Eastwood, que fez 78 anos na semana passada, tornou-se um cineasta americano do mais alto gabarito -começou por ser uma versão esguia e amoral de John Wayne, mas regressou do deserto como herdeiro de John Ford. Com uma trajectória de carreira como a sua, não seria surpreendente se tivesse virado as costas a Callahan, cujas frases emblemáticas ("...Tens de te fazer a ti próprio uma pergunta: 'Sinto-me com sorte?' Então, sentes-te com sorte, bandalho? Vá lá, faz o meu dia") há muito que foram esvaziadas de perigo real por cómicos, políticos e autocolantes nas traseiras dos carros. É fácil imaginar Eastwood, o "auteur", a tratar a personagem como uma má escolha da moda dos anos 70.
Em vez disso, Eastwood volta agora a contactar com o truculento velho pistoleiro. A Warner Home Video vai lançar uma caixa que reúne os cinco filmes da série "Dirty Harry", edição que inclui "Harry, o Detective em Acção/ "Magnum Force", de 1973, "Harry, o Implacável"/"The Enforcer", de 1976, "Impacto Súbito"/ "Sudden Impact", de 1983, e "Na Lista do Assassino"/"The Dead Pool", de 1988 [edição que em Portugal só pode ser adquirida no circuito de importação, já que a Warner só vai editar em Blue Ray "Dead Pool" e o primeiro "Dirty Harry"].
Colt .44 Magnum
Sentado na sala de projecção da Warner, Eastwood explica que o papel de Callahan foi "um verdadeiro ponto de viragem" para a sua carreira -e para a cultura americana. Há também uma aura sentimental em torno do primeiro filme: foi dirigido por Don Siegel, que era não só amigo como mentor de Eastwood, e trouxe o actor de volta à sua cidade natal, São Francisco. Clint também sabe que, para o bem e para o mal, no imaginário dos cinéfilos empunhará sempre o famoso Colt .44 Magnum, de Callahan. "As pessoas ficam desapontadas quando me abordam e me pedem que lhes mostre a arma e eu digo-lhes que, bem, realmente não ando armado", diz, rindo.
Eastwood calçava ténis e apresentava a postura de alguém com uma confiança absoluta -pode franzir o sobrolho no écrã, mas em pessoa é mais como a personagem serena que interpretou em "As Pontes de Madison County". "De todos os filmes que fiz, todos os papéis que interpretei, há alguns que tiveram maior impacte nas pessoas. Harry é aquele de que mais oiço quando encontro pessoas na rua." Já era um duro do ecrã graças aos "westerns spaghetti" que fez com Sergio Leone e o seu papel do polícia individualista em "A Pele de um Malandro"/ "Coogan's Bluff", de Don Siegel. Mas algo em "Dirty Harry" tornou-o único e fez dele um alvo.
Andy Robinson, que interpretou o assassino Scorpio em "A Fúria da Razão", disse que o filme se destacou devido ao seu herói carrancudo e à sua mistura de géneros. "Era um 'thriller' policial, um western e um filme de horror, era isso tudo misturado", disse. "E devido à época em que estreou, tornou-se o filme que toda a gente discutia.
Será fascista? Estará pleno de ironia? Depois desse filme eu durante algum tempo fui rejeitado quando tentava outros papéis. Havia muita gente em Hollywood que estava zangada." Se bem que Pauline Kael, do "The New Yorker", tenha elogiado o estilo do filme como "elegante, brutal e excitante", também o classificou como "um extraordinário ataque aos valores liberais, com todos preconceitos típicos -uma espécie de 'The Fountainhead' em versão musculada." O crítico Roger Ebert escreveu: "A posição moral do filme é fascista.
Disso não há dúvida." A recepção foi mais entusiástica entre o público. Esta "franchise" da Warner Bros. viria a facturar 228 milhões de dólares nas salas americanas -grande sucesso para a época -tornando-se um título muito popular na TV e nos videoclubes. "Clint devia ter ficado para sempre identificado com a personagem", disse Robinson. "Mas ele é maior do que Dirty Harry, o que quer dizer muito."
Republicano mas libertário
Rapazes (e agora, homens mais velhos) continuam a abordar Eastwood e a recitar os monólogos dos filmes ou, o que é mais estranho, arreganham os dentes e pedem ao actor que lhes chame nomes obscenos. "Antigamente, eu dizia a estes rapazes: 'É só um filme, pá.' Depois de algum tempo comecei a fazer o que me pediam.
Fazia toda a gente feliz. Por vezes até me fazia a mim feliz. Por vezes até sentia o que dizia..." Hollywood estava em grande agitação nos finais dos anos 60. Em "Easy Rider" e "Bonnie e Clyde" os antiheróis eram jovens, descuidados e prontos a quebrar as leis de uma nação hipócrita. O sucesso desses filmes abriu a porta a um espírito independente que, politicamente, virava à esquerda. Para muitos observadores, "A Fúria da Razão"/"Dirty Harry" pareceu uma rejeição dessa tendência.
Podia ter sido pior - os argumentistas Harry Julian Fink, R.M. Fink e Dean Riesner tinham escolhido como título inicial "Dead Right" ["Absolutamente Certo"] Siegel tinha trabalhado em Hollywood desde os anos 30 (a montagem inicial que abre "Casablanca" é dele) e por altura dos anos 60 tinha descoberto uma tendência para o cinema de heróis duros com Lee Marvin em "The Killers", Steve McQueen em "Hell Is for Heroes" e Eastwood em "A Pele de um Malandro". Siegel decidiu abrir "A Fúria da Razão" com um plano reverencial da lápide de mármore que recorda os nomes de todos os polícias de São Francisco mortos no cumprimento do dever. Neste filme não se celebravam foras-da-lei encantadores. "Na altura, na imprensa, dava-se muita atenção aos direitos dos acusados, e isso não é mau ou errado, mas ninguém pensava muito sobre os direitos do público ou os direitos da vítima, a atenção não estava virada para aí," diz Eastwood.
"De súbito, ali estava um filme sobre os direitos de todas as vítimas, e penso que isso teve um grande impacte nas pessoas que estavam frustradas." Eastwood é membro registado do Partido Republicano desde os anos 50, mas descreve-se a si próprio como um libertário. Ele foi nomeado para um conselho das artes pelo Presidente Nixon nos anos 70, foi eleito presidente da câmara da pitoresca cidade de Carmel, no Norte da Califórnia, nos anos 80, e foi nomeado para a comissão dos parques da Califórnia (e depois despedido) pelo governador Arnold Schwarzenegger. Nada disto, diz ele, tem alguma coisa a ver com Callahan. "Falou-se muito sobre a ideologia do filme, e sobre qual era a minha ideologia -a imaginária e a verdadeira.
Houve muita gente que pensou que eu era um renegado. Toda a gente quis ver estas coisas no filme. Talvez lá estivessem. Talvez estivessem a ver coisas que não estavam lá. Era um papel. Isso é que é o divertido em ser actor, encarnar algo que não somos." As pessoas pedem-lhe que autografe espingardas, mas Eastwood não é Charlton Heston. Sendo vegetariano radical, ficou perturbado quando recentemente ouviu Hillary Rodham Clinton gabar-se de ter abatido um pássaro. "Eu estava a pensar: 'Pobre pato, mas por que raio fez ela isso?' Eu não gosto de caça. Simplesmente não gosto de matar criaturas. A menos que elas estivessem a tentar matar-me. Então não tinha problema em fazê-lo." Eastwood disse, aliás, ter respeito profundo pelo processo legal.
A alcunha do inspector Harry Callahan, "Dirty", não é uma referência à corrupção -é uma indicação da disponibilidade de Callahan em sujar as mãos, seja através de buscas ilegais ou de um pouco de tortura em alturas de maior pressão. Nada disto é agora surpreendente, não depois de séries de TV como "The Shield" e "NYPD Blue" ou filmes como "Dia de Treino" e "L.A. Confidencial" e jogos de vídeo nos quais Callahan, com o seu casaco e gravata, seria o polícia mais discreto no ecrã.
Mas foi "A Fúria da Razão" que tornou o filme de vingança urbana num género próprio. Seguiu-se-lhe a série "O Justiceiro da Noite", e ofereceram a Eastwood o papel do arquitecto pacato levado à violência pelo ódio e a dor. Recusou o papel -a sua imagem cinematográfica estava muito definida como um guerreiro cheio de cicatrizes -e sugeriu Gregory Peck com a sua postura de professor. Mas o papel foi para o feroz Charles Bronson.
O género continua a portar-se bem.
Existe uma parada constante de produções directas para DVD que imitam o lado mais sanguinolento de "A Fúria da Razão", mas também há filmes mais ambiciosos. Recentemente tivemos o filme de Neil Jordan, "A Estranha em Mim"/"The Brave One", com Jodie Foster a enfrentar bandidos das ruas com um olhar trocista e uma arma. No ano que vem Werner Herzog vai dirigir e Nicolas Cage protagonizar o "remake" de "O Polícia sem Lei"/"Bad Lieutenant" [original de Abel Ferrara], a história de um polícia levado aos seus limites mais sujos.
Há muita gente a imitar Dirty Harry, mas ouvir o próprio Eastwood a recitar o monólogo "Sentes-te com sorte?" é qualquer coisa de excitante. Ele lembra-se de cada palavra, se bem que tenha dito que a última vez que viu o filme tenha sido há uma década, em "laser disc". Ainda melhor é ouvir Eastwood descrever uma ideia pateta para "Dirty Harry VI": "Harry está reformado. Está a pescar num ribeiro. Cansa-se de usar a cana e 'ba-boom'! Ou então Harry está reformado e persegue bandidos com a sua bengala? Talvez seja dono de um bar. Aparecem uns tipos que não querem pagar a conta, então Harry tira a pistola detrás do balcão. 'Eh, rapazes, a próxima bebida é por minha conta...'" No entanto, Rambo, Rocky e Indiana Jones regressaram. "Sim, as pessoas estão sempre a falar-me nisso. Se houvesse um argumento realmente bom ou algo assim, mas já é tão difícil encontrar bons argumentos normalmente, quanto mais um que temos de moldar para se adaptar ao molde da série. Os filmes que agora me interessam levam-me para lugares novos".