Abdellatif Kechiche: À mesa com esta família
Através da barriga, diz-se, conquista-se mais depressa o coração, e o adágio popular serve bem a "O Segredo de um Cuscuz". Sentemo-nos à mesa com esta família francesa de origem magrebina, proletários de uma cidade portuária, Sète, arredores de Marselha. E que o espectáculo comece.
É espectáculo para todos: as fronteiras entre "cinema de autor" e "cinema popular", aqui, já explodiram (e à mesa talvez tenhamos mais hipóteses de ser todos iguais...). Foram dinamitadas pela mão de Abdellatif Kechiche, 48 anos, nascido em Túnis em 1960 e seis anos depois já a viver em Nice, França, para onde o pai emigrou. Este cineasta não é um bombista, é o instigador de uma utopia. Na verdade, de várias utopias, e nem sabemos por onde começar. Que Abdellatif nos ajude (e que os espectadores estejam à altura dele; oiçam: este é um grande filme popular.)
"A minha proposta é quebrar a distância entre o filme e o espectador na sala. Que o espectador estabeleça um laço com o que se está a passar no ecrã", diz ao Ípsilon, num encontro com a imprensa internacional em Paris. "Há algo de utópico nisto de dizer que há uma possibilidade de os operários, as pessoas do mundo do trabalho, poderem viver com a elite da sociedade e interessar à elite da sociedade. Essa ideia de derrubar as fronteiras, a distância, o muro, sinto que toda a minha atitude de cineasta vai em direcção a ela. Pelo percurso do meu pai, emigrante, pela recusa das fronteiras, por misturar actores com não actores... Trata-se de diminuir as distâncias. Isso é do domínio da utopia, mas é de tentar. O gesto é mais importante que o resultado. Mas por vezes acontece."
E acontece em "O Segredo de um Cuscuz", terceira longa-metragem do realizador, depois de "La Faute à Voltaire" (2000, melhor primeira obra no Festival de Veneza) e de "A Esquiva" (2004, César para Melhor Filme). É a história de uma família com os condimentos do mundo de hoje: uma família magrebina, mas também há ali russos; uma família oficial e uma outra, que não é oficial, que com ela colide, que parece perturbar-lhe o equilíbrio dos afectos, mas que também a alarga - e fortifica.
Há longas sequências à mesa, espectáculo de cuscuz e de grandes planos dos rostos, onde a família abre as feridas e cicatriza a sua unidade. É aí que Kechiche nos senta, é aí que o filme se transforma numa incrível experiência de um presente, "ao vivo" - a tal barreira que se quebra entre o espectador e o ecrã, memorável. Podia ser um documentário em que à câmara tivesse sido permitido intrometer-se numa catarse familiar. Mas visto que não é um documentário, como é possível ter resultado assim?
Há também - como num cruzamento entre o cinema em carne viva à la Maurice Pialat e hipóteses ficcionais que se sucedem sem se resolverem - infinitas possibilidades de recomeço, "como no conto árabe", linhas de fuga rocambolescas. Sigamos esta, a mais importante, a via de Slimane, o chefe cansado desta família.
Em nome do pai
Acabou de ser despedido dos estaleiros do porto da cidade e mandado para a reforma (vai mal a vida ali, devido às reconversões empresariais...). O seu silêncio é penetrante, mas é um homem de rosto velado por tudo aquilo que viveu, antes e depois de ter chegado a França.
Move-se entre a mulher, de quem está separado, os filhos e a nova companheira e a filha desta, Rym. Abastece uns e outros de peixe, regressa para sua casa com um prato de cuscuz. Mas passa por todos eles, pelo ruído deles, como um espectro de motoreta, como se estivesse de partida. É para diminuir o seu sentimento de perda, e para não sentir que emigrou para nada, que Slimane tenta, com ajuda da família, um último esforço: abrir um restaurante num barco sem uso.
"Os homens, neste filme, talvez sejam mais apagados, parecem cansados", reconhece Abdellatif. "Mas a iniciativa, quer nos meus filmes anteriores, quer neste, pertence-lhes sempre. Mesmo no silêncio deles ou no apagamento deles. Já as mulheres, e foi isso o que vi à minha volta, na minha família, têm esse lado mediterrânico de personalidades afirmadas. Quis mostrar isso, essa afirmação, mesmo por oposição a um esquema de dominação masculina e à forma caricatural como as mulheres árabes são representadas nos filmes."
Abdellatif diz que põe mais de si próprio nas personagens femininas. Todas elas, no entanto, quando se sentem sós e procuram um lugar no mundo compõem o seu auto-retrato - ele autoriza que se tire essa conclusão. E confessa: "A história de "O Segredo de um Cuscuz" é uma ficção, mas as personagens são inspiradas em membros da minha família, o pai, a mãe, as irmãs... Pensei rodar este filme há dez anos com os meus, na casa onde cresci, em Nice. Não chegou a acontecer porque, entretanto, tive o dinheiro para fazer aquela que seria minha primeira longa, "La Faute à Voltaire". Quando regressei a este projecto, o meu pai tinha falecido, não fazia sentido fazê-lo da forma que tinha pensado. Mas manteve-se como um dos temas mais importantes do filme a homenagem à geração do meu pai. Tenho a sensação que o seu percurso foi como ultrapassar uma montanha. Ele fez algo de heróico, foi quase um percurso de condenado. Sinto que se condenou a uma vida de dor: fazer o mesmo trabalho durante 40 anos, nas obras, no meio do pó. Houve ali algo de sacrificial, de purgatório. Fê-lo pelos filhos, era isso que dava sentido à sua vida. Transmitiu-me, penso, essa vontade de dar um sentido às coisas. Quis homenageá-lo."
Fá-lo dem virar a cara ao retrato actual da sociedade francesa, às manifestações de racismo, à burocracia administrativa, mas a mostrar de forma clara: nós, magrebinos, somos também a França, isto é facto, sem discussão. Não se denuncia a partir de um gueto, conta-se a partir de um centro babélico, estilhaçado por línguas e sotaques. Absolutamente contemporâneo.
Sendo uma homenagem, faz sentido que o intérprete de Slimane, Habib Boufares, que chegou a França no início dos anos 1970, tenha sido um velho amigo do pai de Kechiche. O realizador convenceu, ao fim de longas semanas de ensaios, este trabalhador das obras a negociar com o patrão a sua pré-reforma e partir para uma rodagem, de sete meses, de um filme em que teria um dos papéis principais.
Para outro dos papéis principais, o de Rym, a filha da companheira de Slimane e em quem este encontra uma cúmplice para a sua procura de auto-estima, Kechiche descobriu uma adolescente de 18 anos num curso de Direito na Faculdade de Marselha. A rapariga, Hafsia Herzi, teve de engordar quinze quilos, aprender a dança do ventre, e saiu do Festival de Veneza com o prémio para uma jovem esperança (categoria que lhe valeria, meses depois, o César). Tão explosiva, tão física, quanto Slimane é uma figura em perda de densidade, Rym serve como exemplo da misteriosa, insondável, relação que pode existir entre um realizador e um (não) actor. E dos resultados a que isso pode chegar.
"Coup-de-foudre"
"Fiz um longo "casting" em Marselha, e foi assim que encontrei Hafsia. Foi um "coup-de-foudre". É difícil definir o carisma de alguém, explicar porque é que alguém rasga o ecrã e pode ser apagado na vida real. É indefinível por natureza, e é por isso que perturba. Há certamente algo da personalidade de Hafsia que dá tom à personagem, mas são pessoas completamente diferentes. Mas ela tem a capacidade de acreditar no que faz sem duvidar. É esse o interesse de pessoas que não têm um método do trabalho, como é o caso dos que não são actores. Não têm uma receita, acreditam - ou não acreditam. Um método de trabalho pode dar a ilusão de que temos sempre solução para um problema. Isso dá um lado artificioso às coisas: mesmo se o trabalho é bem feito, não deixa de ser trabalho. Gosto, por isso, de ir com os actores até lugares que não têm a ver com o trabalho."
Dá como exemplo a sequência da dança do ventre de Rym/Hafsia para explicar o inexplicável - sem abrir o jogo desta ficção: há um momento em que Rym tem que criar uma manobra de diversão para tentar salvar a festa de lançamento do restaurante de Slimane. "A dança do ventre fascina-me: o sentir que há qualquer coisa de muito forte no interior do corpo", diz Kechiche. "É evidente que há necessidade de aprender uma técnica, como no trabalho de um actor, mas se se ultrapassa essa necessidade de técnica, pode resultar algo de muito belo. E chega-se ao inexplicável. Hafsia aprendeu a movimentar a bacia, a vibrar o ventre... mas é uma vibração interior, e isso é toda uma vida, tudo o que aquela pessoa é.
Isso é indefinível. Isto para dizer que, quando escolho actores, o termo "profissional" e "não profissional" não faz sentido para mim. Não estou a denegrir a profissão de actor, ao contrário, fascina-me" - Abdellatif, aliás, começou por ser actor, no teatro e depois no cinema [ver caixa nestas páginas]. "Mas há pessoas que nunca foram actores e que têm um dom para esse "métier". Como Hafsia. Por isso acho interessante confrontar aqueles que têm um método, de concentração, de saber [há neste "cast" "habituées" do cinema de Kechiche], com aqueles que trazem uma frescura, o prazer da primeira vez. Misturar o profissionalismo com a frescura ajuda, inclusivamente, os actores cheios de "métier" a refrescarem-se".
Não está só a falar de um método. Não estamos a ouvir só palavras. Estamos a ouvir o batimento do coração deste filme. "Mostrar um determinado meio social e dar-lhe uma dimensão romanesca, mostrar homens que habitualmente são mostrados de forma caricatural e que só se representam como gente em conflito com a sociedade, arranjar-lhes uma ficção e dar-lhes a dimensão de heróis... É essa a questão ao utilizar não actores: a vontade de dar a partilhar a uma série de pessoas, através da ficção, um mundo que não lhes é acessível, o mundo do cinema, das aparências, dos festivais, por exemplo. Quando vi Habib Boufrez, que era amigo do meu pai e trabalhava com ele nas obras, e Hafsia Herzi, uma rapariga de um bairro social de Marselha, no Festival de Veneza, uma cidade da elite, a utopia tornou-se concreta. Logo, deu sentido à minha procura."
Mais possibilidades de vida
A procura começa muito antes, no "casting" e em longos períodos de ensaio. No seu trabalho com os actores, o cinema de Kechiche já é um "caso": como em Pialat, Cassavetes ou Mike Leigh, perguntamos "como é que faz?"
"As personagens são criadas pela minha inspiração e pelo encontro com os actores, com a personalidade deles e com o que é possível fazer com o grupo. Esse grupo faz-se aos poucos, com a alquimia que se vai criando. Há todo um tempo de ensaios para nos conhecermos. Passo muito tempo com cada um deles, chego a ser muito íntimo de alguns, ao ponto em que deixa de haver inibições. Tenho formação de teatro, como actor, e isso é uma referência: mesmo se o teatro parece uma coisa artificial, há mais possibilidades de vida do que no cinema, porque há menos constrangimentos técnicos. E filmo as cenas no tempo real da sua duração, isso obriga os actores a estarem mesmo ali, senão seria desastroso. Rodo em continuidade, para afastar o artifício, quero vida."
Isso vê-se no ecrã, mas perante um monumento como a sequência de vinte minutos de um cuscuz familiar, o que se vê no ecrã enche-nos de mais perguntas, aumenta o nosso espanto. Estava tudo escrito? São actores, são uma família? Como fez, Abdellatif Kechiche?
"Estava tudo escrito no argumento. Essa cena da refeição foi ensaiada durante um mês. Houve coisas que mudaram, que os actores adaptaram à sua forma de falar, não lhes exigi que respeitassem escrupulosamente o que estava escrito. Mas, na verdade, acontecia frequentemente que o texto que diziam era quase sempre o texto que estava escrito. Não era isso o mais difícil. O mais difícil era dar a impressão de que as coisas estavam a ser vividas pela primeira vez. Era preciso que eles se libertassem, que se sentissem uma família juntos".
E como foi a rodagem dessa sequência? "Eles tinham fome". Simples. "A cena foi rodada em 15 dias e eu pedi aos actores para chegarem à rodagem sem comer, pedi que não comessem. Chegaram de facto esfaimados, comiam um primeiro prato de cuscuz" - cozinhado por quem no filme tem o segredo e cozinha, Bouraouia Marzouk, que interpreta Souad, a mãe divorciada desta família. "A cena era interrompida durante horas para esperarmos que eles tivessem fome de novo e recomeçávamos. Filmávamos a cena duas vezes por dia, foram 15 dias assim. Asseguro que houve quem nunca mais conseguisse comer cuscuz na vida."
Desfaça-se o mito: Abdel, como lhe chamam, nem é um entusiasta do cuscuz. "Há um "savoir faire" que ultrapassa a técnica, há uma alquimia, na comida, mas não é no cuscuz que sinto isso. É no queijo. Não é uma questão de sabor, é o mistério que está na forma como o queijo é feito. Gosto muito da cozinha italiana". Aliás, remata, o que está no prato em "O Segredo de um Cuscuz" não interessa. O segredo nem é o cuscuz. "Não tem importância se o cuscuz é bom ou não. O caminho, o processo, o dom de cada um, pela música, pela dança, é isso que se torna mais importante. Isso e a forma como o espectador participa".
Como é possível resistir? Sentemo-nos à mesa com esta família.
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Através da barriga, diz-se, conquista-se mais depressa o coração, e o adágio popular serve bem a "O Segredo de um Cuscuz". Sentemo-nos à mesa com esta família francesa de origem magrebina, proletários de uma cidade portuária, Sète, arredores de Marselha. E que o espectáculo comece.
É espectáculo para todos: as fronteiras entre "cinema de autor" e "cinema popular", aqui, já explodiram (e à mesa talvez tenhamos mais hipóteses de ser todos iguais...). Foram dinamitadas pela mão de Abdellatif Kechiche, 48 anos, nascido em Túnis em 1960 e seis anos depois já a viver em Nice, França, para onde o pai emigrou. Este cineasta não é um bombista, é o instigador de uma utopia. Na verdade, de várias utopias, e nem sabemos por onde começar. Que Abdellatif nos ajude (e que os espectadores estejam à altura dele; oiçam: este é um grande filme popular.)
"A minha proposta é quebrar a distância entre o filme e o espectador na sala. Que o espectador estabeleça um laço com o que se está a passar no ecrã", diz ao Ípsilon, num encontro com a imprensa internacional em Paris. "Há algo de utópico nisto de dizer que há uma possibilidade de os operários, as pessoas do mundo do trabalho, poderem viver com a elite da sociedade e interessar à elite da sociedade. Essa ideia de derrubar as fronteiras, a distância, o muro, sinto que toda a minha atitude de cineasta vai em direcção a ela. Pelo percurso do meu pai, emigrante, pela recusa das fronteiras, por misturar actores com não actores... Trata-se de diminuir as distâncias. Isso é do domínio da utopia, mas é de tentar. O gesto é mais importante que o resultado. Mas por vezes acontece."
E acontece em "O Segredo de um Cuscuz", terceira longa-metragem do realizador, depois de "La Faute à Voltaire" (2000, melhor primeira obra no Festival de Veneza) e de "A Esquiva" (2004, César para Melhor Filme). É a história de uma família com os condimentos do mundo de hoje: uma família magrebina, mas também há ali russos; uma família oficial e uma outra, que não é oficial, que com ela colide, que parece perturbar-lhe o equilíbrio dos afectos, mas que também a alarga - e fortifica.
Há longas sequências à mesa, espectáculo de cuscuz e de grandes planos dos rostos, onde a família abre as feridas e cicatriza a sua unidade. É aí que Kechiche nos senta, é aí que o filme se transforma numa incrível experiência de um presente, "ao vivo" - a tal barreira que se quebra entre o espectador e o ecrã, memorável. Podia ser um documentário em que à câmara tivesse sido permitido intrometer-se numa catarse familiar. Mas visto que não é um documentário, como é possível ter resultado assim?
Há também - como num cruzamento entre o cinema em carne viva à la Maurice Pialat e hipóteses ficcionais que se sucedem sem se resolverem - infinitas possibilidades de recomeço, "como no conto árabe", linhas de fuga rocambolescas. Sigamos esta, a mais importante, a via de Slimane, o chefe cansado desta família.
Em nome do pai
Acabou de ser despedido dos estaleiros do porto da cidade e mandado para a reforma (vai mal a vida ali, devido às reconversões empresariais...). O seu silêncio é penetrante, mas é um homem de rosto velado por tudo aquilo que viveu, antes e depois de ter chegado a França.
Move-se entre a mulher, de quem está separado, os filhos e a nova companheira e a filha desta, Rym. Abastece uns e outros de peixe, regressa para sua casa com um prato de cuscuz. Mas passa por todos eles, pelo ruído deles, como um espectro de motoreta, como se estivesse de partida. É para diminuir o seu sentimento de perda, e para não sentir que emigrou para nada, que Slimane tenta, com ajuda da família, um último esforço: abrir um restaurante num barco sem uso.
"Os homens, neste filme, talvez sejam mais apagados, parecem cansados", reconhece Abdellatif. "Mas a iniciativa, quer nos meus filmes anteriores, quer neste, pertence-lhes sempre. Mesmo no silêncio deles ou no apagamento deles. Já as mulheres, e foi isso o que vi à minha volta, na minha família, têm esse lado mediterrânico de personalidades afirmadas. Quis mostrar isso, essa afirmação, mesmo por oposição a um esquema de dominação masculina e à forma caricatural como as mulheres árabes são representadas nos filmes."
Abdellatif diz que põe mais de si próprio nas personagens femininas. Todas elas, no entanto, quando se sentem sós e procuram um lugar no mundo compõem o seu auto-retrato - ele autoriza que se tire essa conclusão. E confessa: "A história de "O Segredo de um Cuscuz" é uma ficção, mas as personagens são inspiradas em membros da minha família, o pai, a mãe, as irmãs... Pensei rodar este filme há dez anos com os meus, na casa onde cresci, em Nice. Não chegou a acontecer porque, entretanto, tive o dinheiro para fazer aquela que seria minha primeira longa, "La Faute à Voltaire". Quando regressei a este projecto, o meu pai tinha falecido, não fazia sentido fazê-lo da forma que tinha pensado. Mas manteve-se como um dos temas mais importantes do filme a homenagem à geração do meu pai. Tenho a sensação que o seu percurso foi como ultrapassar uma montanha. Ele fez algo de heróico, foi quase um percurso de condenado. Sinto que se condenou a uma vida de dor: fazer o mesmo trabalho durante 40 anos, nas obras, no meio do pó. Houve ali algo de sacrificial, de purgatório. Fê-lo pelos filhos, era isso que dava sentido à sua vida. Transmitiu-me, penso, essa vontade de dar um sentido às coisas. Quis homenageá-lo."
Fá-lo dem virar a cara ao retrato actual da sociedade francesa, às manifestações de racismo, à burocracia administrativa, mas a mostrar de forma clara: nós, magrebinos, somos também a França, isto é facto, sem discussão. Não se denuncia a partir de um gueto, conta-se a partir de um centro babélico, estilhaçado por línguas e sotaques. Absolutamente contemporâneo.
Sendo uma homenagem, faz sentido que o intérprete de Slimane, Habib Boufares, que chegou a França no início dos anos 1970, tenha sido um velho amigo do pai de Kechiche. O realizador convenceu, ao fim de longas semanas de ensaios, este trabalhador das obras a negociar com o patrão a sua pré-reforma e partir para uma rodagem, de sete meses, de um filme em que teria um dos papéis principais.
Para outro dos papéis principais, o de Rym, a filha da companheira de Slimane e em quem este encontra uma cúmplice para a sua procura de auto-estima, Kechiche descobriu uma adolescente de 18 anos num curso de Direito na Faculdade de Marselha. A rapariga, Hafsia Herzi, teve de engordar quinze quilos, aprender a dança do ventre, e saiu do Festival de Veneza com o prémio para uma jovem esperança (categoria que lhe valeria, meses depois, o César). Tão explosiva, tão física, quanto Slimane é uma figura em perda de densidade, Rym serve como exemplo da misteriosa, insondável, relação que pode existir entre um realizador e um (não) actor. E dos resultados a que isso pode chegar.
"Coup-de-foudre"
"Fiz um longo "casting" em Marselha, e foi assim que encontrei Hafsia. Foi um "coup-de-foudre". É difícil definir o carisma de alguém, explicar porque é que alguém rasga o ecrã e pode ser apagado na vida real. É indefinível por natureza, e é por isso que perturba. Há certamente algo da personalidade de Hafsia que dá tom à personagem, mas são pessoas completamente diferentes. Mas ela tem a capacidade de acreditar no que faz sem duvidar. É esse o interesse de pessoas que não têm um método do trabalho, como é o caso dos que não são actores. Não têm uma receita, acreditam - ou não acreditam. Um método de trabalho pode dar a ilusão de que temos sempre solução para um problema. Isso dá um lado artificioso às coisas: mesmo se o trabalho é bem feito, não deixa de ser trabalho. Gosto, por isso, de ir com os actores até lugares que não têm a ver com o trabalho."
Dá como exemplo a sequência da dança do ventre de Rym/Hafsia para explicar o inexplicável - sem abrir o jogo desta ficção: há um momento em que Rym tem que criar uma manobra de diversão para tentar salvar a festa de lançamento do restaurante de Slimane. "A dança do ventre fascina-me: o sentir que há qualquer coisa de muito forte no interior do corpo", diz Kechiche. "É evidente que há necessidade de aprender uma técnica, como no trabalho de um actor, mas se se ultrapassa essa necessidade de técnica, pode resultar algo de muito belo. E chega-se ao inexplicável. Hafsia aprendeu a movimentar a bacia, a vibrar o ventre... mas é uma vibração interior, e isso é toda uma vida, tudo o que aquela pessoa é.
Isso é indefinível. Isto para dizer que, quando escolho actores, o termo "profissional" e "não profissional" não faz sentido para mim. Não estou a denegrir a profissão de actor, ao contrário, fascina-me" - Abdellatif, aliás, começou por ser actor, no teatro e depois no cinema [ver caixa nestas páginas]. "Mas há pessoas que nunca foram actores e que têm um dom para esse "métier". Como Hafsia. Por isso acho interessante confrontar aqueles que têm um método, de concentração, de saber [há neste "cast" "habituées" do cinema de Kechiche], com aqueles que trazem uma frescura, o prazer da primeira vez. Misturar o profissionalismo com a frescura ajuda, inclusivamente, os actores cheios de "métier" a refrescarem-se".
Não está só a falar de um método. Não estamos a ouvir só palavras. Estamos a ouvir o batimento do coração deste filme. "Mostrar um determinado meio social e dar-lhe uma dimensão romanesca, mostrar homens que habitualmente são mostrados de forma caricatural e que só se representam como gente em conflito com a sociedade, arranjar-lhes uma ficção e dar-lhes a dimensão de heróis... É essa a questão ao utilizar não actores: a vontade de dar a partilhar a uma série de pessoas, através da ficção, um mundo que não lhes é acessível, o mundo do cinema, das aparências, dos festivais, por exemplo. Quando vi Habib Boufrez, que era amigo do meu pai e trabalhava com ele nas obras, e Hafsia Herzi, uma rapariga de um bairro social de Marselha, no Festival de Veneza, uma cidade da elite, a utopia tornou-se concreta. Logo, deu sentido à minha procura."
Mais possibilidades de vida
A procura começa muito antes, no "casting" e em longos períodos de ensaio. No seu trabalho com os actores, o cinema de Kechiche já é um "caso": como em Pialat, Cassavetes ou Mike Leigh, perguntamos "como é que faz?"
"As personagens são criadas pela minha inspiração e pelo encontro com os actores, com a personalidade deles e com o que é possível fazer com o grupo. Esse grupo faz-se aos poucos, com a alquimia que se vai criando. Há todo um tempo de ensaios para nos conhecermos. Passo muito tempo com cada um deles, chego a ser muito íntimo de alguns, ao ponto em que deixa de haver inibições. Tenho formação de teatro, como actor, e isso é uma referência: mesmo se o teatro parece uma coisa artificial, há mais possibilidades de vida do que no cinema, porque há menos constrangimentos técnicos. E filmo as cenas no tempo real da sua duração, isso obriga os actores a estarem mesmo ali, senão seria desastroso. Rodo em continuidade, para afastar o artifício, quero vida."
Isso vê-se no ecrã, mas perante um monumento como a sequência de vinte minutos de um cuscuz familiar, o que se vê no ecrã enche-nos de mais perguntas, aumenta o nosso espanto. Estava tudo escrito? São actores, são uma família? Como fez, Abdellatif Kechiche?
"Estava tudo escrito no argumento. Essa cena da refeição foi ensaiada durante um mês. Houve coisas que mudaram, que os actores adaptaram à sua forma de falar, não lhes exigi que respeitassem escrupulosamente o que estava escrito. Mas, na verdade, acontecia frequentemente que o texto que diziam era quase sempre o texto que estava escrito. Não era isso o mais difícil. O mais difícil era dar a impressão de que as coisas estavam a ser vividas pela primeira vez. Era preciso que eles se libertassem, que se sentissem uma família juntos".
E como foi a rodagem dessa sequência? "Eles tinham fome". Simples. "A cena foi rodada em 15 dias e eu pedi aos actores para chegarem à rodagem sem comer, pedi que não comessem. Chegaram de facto esfaimados, comiam um primeiro prato de cuscuz" - cozinhado por quem no filme tem o segredo e cozinha, Bouraouia Marzouk, que interpreta Souad, a mãe divorciada desta família. "A cena era interrompida durante horas para esperarmos que eles tivessem fome de novo e recomeçávamos. Filmávamos a cena duas vezes por dia, foram 15 dias assim. Asseguro que houve quem nunca mais conseguisse comer cuscuz na vida."
Desfaça-se o mito: Abdel, como lhe chamam, nem é um entusiasta do cuscuz. "Há um "savoir faire" que ultrapassa a técnica, há uma alquimia, na comida, mas não é no cuscuz que sinto isso. É no queijo. Não é uma questão de sabor, é o mistério que está na forma como o queijo é feito. Gosto muito da cozinha italiana". Aliás, remata, o que está no prato em "O Segredo de um Cuscuz" não interessa. O segredo nem é o cuscuz. "Não tem importância se o cuscuz é bom ou não. O caminho, o processo, o dom de cada um, pela música, pela dança, é isso que se torna mais importante. Isso e a forma como o espectador participa".
Como é possível resistir? Sentemo-nos à mesa com esta família.