"O meu trabalho é reparar os buracos negros do mundo"

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Podíamos começar por esta frase: The Atlas Group é um dos mais interessantes e desafiadores colectivos a trabalhar hoje em artes plásticas. Podíamos começar por esta frase não fosse dar-se o caso de o Atlas Group não ser um colectivo e sim uma fachada. The Atlas Group é apenas um artista - o libanês Walid Raad (está aqui, de costas, porque se recusa a ser fotografado de frente), de 40 anos, a viver em Nova Iorque. No caso de um projecto dedicado a ressuscitar a cultura e a história da guerra no Líbano através da construção de um longo e imbricado arquivo de documentos ficcionados - fotografias, vídeos, diários... -, o nome é apenas o primeiro alçapão.

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Podíamos começar por esta frase: The Atlas Group é um dos mais interessantes e desafiadores colectivos a trabalhar hoje em artes plásticas. Podíamos começar por esta frase não fosse dar-se o caso de o Atlas Group não ser um colectivo e sim uma fachada. The Atlas Group é apenas um artista - o libanês Walid Raad (está aqui, de costas, porque se recusa a ser fotografado de frente), de 40 anos, a viver em Nova Iorque. No caso de um projecto dedicado a ressuscitar a cultura e a história da guerra no Líbano através da construção de um longo e imbricado arquivo de documentos ficcionados - fotografias, vídeos, diários... -, o nome é apenas o primeiro alçapão.

Quando alguém nos diz que o mundo se encheu de buracos negros e afirma não acreditar numa relação dicotómica entre realidade e construção, sabemos que é melhor vermos onde pomos os pés. Sobretudo quando essa pessoa se confessa em crise perante o seu próprio projecto.

Apesar de todos os alçapões, Walid Raad não parece, contudo, ter medo de se expor - e é um prazer ouvi-lo pensar em voz alta. Quem quiser confirmá- lo ao vivo, pode fazê-lo amanhã, na Culturgest, em Lisboa, onde vai estar à conversa, às 17h, o sítio onde expõe pela primeira vez em Portugal as suas obras, que ocupam toda a Galeria 1.

A informação disponível sobre o Atlas Group é extremamente contraditória. Por vezes, surge como um projecto, outras como uma fundação; umas vezes, diz-se que começou em 1989, outras em 1976, no início da guerra civil no Líbano (1975- 1990), outras em 1967, que é o ano em que o Walid nasceu, mas que faria do Atlas Group um projecto dedicado a investigar eventos por vir. Por outro lado, Walid Raad, o artista plástico, começa a construir os Arquivos Atlas Group em 1999...

 Parece que a informação está sempre a mudar, não é? É porque é cada vez mais difícil para mim estabelecer a que período pertence este projecto. É-me muito difícil estabelecer quando começou e quando acaba. A designação - se é uma fundação ou um projecto, artístico ou de outra natureza - também muda porque a minha forma de pensar o Atlas Group também muda. Hoje, por exemplo, acho que devia dizer que o projecto vai de 1962 a 1973. Às vezes, até acho que poderia pertencer ao século XVIII.

Em que sentido?

Em parte, [o Atlas Group] trata-se da transformação do mundo em informação. E a transformação do mundo em informação permite a emergência do arquivo, porque depois [de ter a informação] é preciso pensar na sua classificação. É por isso que [no século XVIII] se começam a classificar elementos naturais, informação médica... Em certo sentido, o Atlas Group faz isso. Começou a pensar que houve uma coisa chamada guerra que produziu traços e que alguém tem que indexá-los. Não são os traços a que estamos mais habituados, como quem começou a guerra, quem são os maiores jogadores e quais os seus motivos, qual a cronologia de eventos. Com o Atlas Group, pode ser informação sobre um cavalo não ter chegado a horas, pode não ser sobre a explosão de um carro-bomba e sim sobre o motor do carro, mas é uma espécie de informação, informação lateral. Mas, neste momento, parece-me que o problema [do Atlas Group] é tratar ainda o mundo como informação, mesmo sendo informação tangencial. Quando se transforma o mundo em informação, quer seja com materiais tradicionais ou idiossincráticos, já se entrou no jogo. Quer dizer, eu não inventei isto sozinho! Por exemplo, porque é que eu sei mais sobre que tipo de carro explodiu e quantos quilos de TNT foram usados do que sobre quem fez aquilo?

Porquê?

Porque foi o tipo de informação disseminada pela imprensa.

Sim, mas porque é que acha que se escolhe passar esse tipo de informação?

De certa forma, o que caracteriza as experiências traumáticas é uma relação deslocada com o evento. Por exemplo, o 11 de Setembro: é espantoso que as histórias dominantes comecem todas por "numa linda terça-feira de manhã". Dizia-se "num lindo dia azul" e só depois se [a culpa era] do Afeganistão, dos "mujahedin", da política internacional americana dos anos 80 que produziu o "mujahedin" que radicalizaram os muçulmanos e que voltava para nos dar uma dentada no rabo... É o que temos na psicanálise: Freud diz que o rapaz está a olhar para a mãe, olha para os pés, sobe pela perna e, de repente, percebe, "meu Deus, a mãe não tem pénis!", e faz um clique, e cria como objecto de desejo as últimas coisas que viu antes do trauma, sendo por isso que os cintos de ligas e os sapatos são objectos de atracção sexual. É como se nas nossas relações com traumas históricos acontecesse a mesma coisa. Quando a imprensa começa a falar da distância a que o motor de um carro-bomba foi cair, e não do porquê de esse carro ter explodido, está a dar-nos um sentido do carácter traumático da guerra que produz relações particularmente histéricas, fetichistas. Estas narrativas, ligadas a um evento, mas sempre antes ou depois ou ao lado, alguém tem que coligir porque nos dizem muito do que é experimentar a guerra como evento traumático.

Era nisto que o Atlas Group inicialmente se baseava: alguém tem que coligir todas essas deslocações, quer sejam temporais, espaciais, fetichistas ou estéticas. Têm que ser coligidas para se poder pensar no carácter da guerra. Foi aqui que tudo começou. É um modelo muito psicológico. Segue a ideia de que uma experiência de violência produz um buraco negro na psique. Uma actividade cultural que se siga a isso torna-se numa actividade de crítica cultural. Foi assim que o Atlas Group foi pensado.

A sua forma de pensar mudou em que direcção?

Hoje acho que os buracos negros em que temos que pensar não estão na psique. Hoje acho que certo número de catástrofes produz buracos negros na própria realidade. Eu estou óptimo, mas há buracos negros no mundo. Quem consegue ver esses buracos e qual é o papel do artista perante eles? É nisso que estou a pensar hoje.

Quando fala em buracos negros na realidade, está a falar em quê, exactamente?

Numa cidade que viveu a guerra, por exemplo: perante um edifício reconstruído, tenho uma visão da cidade completamente destruída. Depois conheço um artista que faz uma fotografia do mesmo edifício e digo-lhe: "Este edifício está reconstruído e tu retrataste-o como uma ruína". Ele diz-me: "Sim, foi o que eu vi". Para mim, isso torna-se num facto estético, a confirmação de uma coisa que achei que estava na minha cabeça. Procuro tendencialmente artistas, escritores e pensadores que me façam estas confirmações - e encontro- os. É assim que sei que não estou a ficar maluco, que o trauma não está em mim, está no mundo e o mudou na sua essência. O meu trabalho é assim maior: já não é curar-me a mim nem aos outros, é fazer do mundo um espaço de novo referencial, reparar os seus buracos negros. É um projecto diferente, assim só posso olhar para o Atlas Group de outra maneira. Digamos que não fui eu que fiz o Atlas Group. Hoje diria: "Uau, é fascinante que isto tenha emergido na ficção, não que seja ficcional, mas que alguém se tenha apercebido desses buracos negros e só tenha podido expressá-los num género chamado ficção". [Comecei a perguntarme] porque é que não houve um historiador que fez isto, e alguém que escreveu nos jornais. Porque é que teve que ser um facto estético?

Chegou a alguma conclusão?

Que certas coisas só podem emergir na ficção.

Há pouco, falava em narrativas idiossincráticas e no tipo de informação que coligem. O Atlas Group foca-se em microeventos. Um homem que foi a Paris, as características de um certo carro-bomba, uma certa pessoa raptada...

Digamos que vou fazer um retrato seu. Posso começar com as coisas simples: raça, género, classe, trajectória política. Supostamente, isto é simples. O complexo é: deite-se no sofá, vamos falar da sua mãe, do seu pai, das contradições... De certa forma, o Atlas Group baseava-se em pensar que precisamos de um modelo mais complexo de determinação, e quanto mais complexo melhor. O problema é que ambos os modelos são ainda baseados na transformação do mundo em estruturas de informação. Hoje acho que a mera transformação do mundo em informação processável é um problema.

Onde é que isso o deixa?

À procura de modelos em que essa transformação não aconteça. Porque eles existem. Estou a ler a obra de um escritor libanês-iraquiano chamado Jalal Toufic que escreveu muito sobre vampiros. Não estamos a falar de dentes e sangue [risos], apesar de isso também poder ser divertido [risos], estamos a falar de um espaçotempo particular, onde se existe mas não se produz um reflexo no espelho, onde se está presente aqui e a nossa sombra está noutro sítio. Estamos a falar de diferentes relações espacio-temporais. E há certos sítios e momentos em que elas se tornam mais claras. Certas catástrofes podem torná-las evidentes. Beirute, por exemplo, é uma cidade muito vampírica. Pode-se ver um edifício reconstruído e ter a sensação de que ele está em ruínas. Não se sabe bem se se está no presente, no passado, se é na nossa cabeça. Em Beirute, houve mais de três mil carrosbomba, mais os bombardeamentos, mortes, assassinatos. A certa altura, sabe-se que um carro-bomba explodiu ontem, um hoje e que outro háde explodir amanhã. Sabemos que a maioria deles explode quando muita gente está a ir trabalhar, às 9h. Decidimos: ok, não vou trabalhar às 9h nem volto às 17h. Acontece que toda a gente está a pensar na mesma coisa. Mas não é possível ter toda a gente a trabalhar a horas diferentes. Outro modelo seria decidir não sair de casa, mas as pessoas deixavam de ter vida. O que aconteceu em Beirute foi uma espécie de terceira alternativa.

A maior parte das pessoas gosta de viver numa cidade porque isso traz consigo um certo anonimato, mas, depois de três mil carros carrosbomba, percebemos que não podemos continuar a viver no anonimato porque precisamos de saber de quem é o carro que está estacionado lá em baixo, se é do nosso vizinho, se é da filha ou do filho dele, se é de alguém com quem um deles namora. Vemonos obrigados a começar a perguntar os segredos aos nossos vizinhos. Mas não se pode fazer isto em todo o lado. Faz-se no nosso prédio e nos dois prédios ao lado. Define-se um perímetro. Por isso, a dada altura, começa literalmente a ver-se através das paredes. Estou a dizer uma coisa simples. Uma coisa radical seria dizer que preciso de saber tanto sobre si - porque quando o bombardeamento começar vou entrar na sua casa sem bater à porta - que começo a definir um espaço-tempo que é como o das narrativas de vampiros: não há paredes; não há antes, depois, ontem, amanhã, porque sei que posso morrer a qualquer altura. Agora, a lógica do espaço-tempo do pequeno perí- metro não desaparece quando a guerra acaba, pode perdurar talvez por mais 20 anos.

Está a falar de uma invasão da vida urbana por uma lógica de existência outra, rural, de clãs talvez.

Exactamente. As pessoas deixam de ser cidadãos. Lutamos pelo nosso gueto aqui, os nossos vizinhos lutam pelo deles ali. O Estado acha que, no fim da guerra, por retirar os elementos materiais desta - armas, barreiras nas estradas ... -, reconstrói o tempo e o espaço, mas não percebe que o espaçotempo da guerra ainda existe. Este tipo de lógica persiste em sociedades que vivem na ameaça constante de assalto. Por exemplo, em Nova Iorque, aconteceu depois do 11 de Setembro.

Como?

As fronteiras entre público e privado começaram a deixar de ser tão claras. Íamos no metro e aparecia um polícia que nos pedia para saírmos para nos revistar. Por isso, algumas pessoas começaram a andar com mochilas de plástico transparente. É uma loucura [risos]! E foi só um evento! Ou seja: tal como um 11 de Setembro me põe a ver através de mochilas, três mil eventos depois, podemos ver através de paredes. Literalmente. Este é o tipo de consequências com que estou neste momento fascinado. Por outro lado, há uma coisa que o Atlas Group sem pre fez: nunca mostra os documentos originais em que se baseiam os seus arquivos. Mostro fotografias, mas não as originais, mostro os escritos de diários, mas não os diários. Mostro imagens de imagens.

Eu costumava dizer "estou a tentar reflectir a forma como a História é mediada", costumava dizer que o que me interessava era pensar quais os processos que transformam um objecto em História. Hoje penso que uma das consequências destes desastres é levar a uma retirada da tradição e das referências e à emergência de falsos e duplos. Um artista que insiste em produzir duplos pode assim estar a revelar um sintoma das catástrofes. Talvez face a desastres como aqueles de que falámos uma das funções do artista seja ressuscitar a tradição e a Cultura, de forma a fazer com que os documentos possam ser [de novo] referenciais. O artista que está lá em baixo [The Atlas Group] parece estar apostado em produzir duplos.

De que maneira diria que a sua mudança de perspectiva vai influenciar formalmente o seu trabalho?

Ainda estou a tentar perceber.

Há aquelas imagens mais recentes de pedaços de edifícios recortados e suspensos no meio de enquadramentos a branco...

Sim, talvez mais do que quaisquer outros trabalhos, influenciaram a minha nova perspectiva, deram-me uma saída. Têm muito a ver com essa lógica de ver através de edifícios, etc. A história deles é que o Atlas Group tem estado a fazer um levantamento com fotógrafos profissionais e que uma mulher com excelente formação técnica nos começou a mandar pequenas fotografias a preto e branco que estão desfocadas, ou foram feitas à pressa, ou são más composições. Ela tirou essas fotografias no princípio dos anos 90 e 12 anos depois mandou novas versões, a cores, dizendo serem imagens recentes dos mesmo edifícios. Mas nós apercebemo- nos de que ela foi às suas imagens originais, corrigiu a perspectiva e coloriu-as. Isto parece-me uma mudança interessante. Porque é que alguém com boa formação insiste em fazer imagens mal compostas? Seria porque durante a guerra não se podia montar um tripé e ficar num sítio 20 minutos, arriscando que caísse uma bomba? Não. Seria porque as milícias podiam vir fazer perguntas? Não. Poderá ser porque ficamos tão horrorizados com visões de destruição que não conseguimos enfrentá-las? Não. Será porque o edifício não está ali, porque se está a retirar? Sim. É o que eu acho. Depois da guerra, quando estamos dentro do labirinto, dentro do gueto, como é que se fotografa o facto de estar ali uma parede mas se poder ver através dela? Será que a fotografia é o suporte adequado [para transmitir esta ideia]? Porque quando se fotografa a parede aparece...

Bom, quando a guerra acaba, o Estado tenta secar o edifício dos seus segredos e torná-lo num ponto abstracto. Perante a lei, somos todos iguais, somos seres abstractos. É preciso fazer o mesmo aos edifícios. Mas, então, eles tornam-se muito planos. É como se esse grau de abstracção fosse necessário, mas, ao mesmo tempo, nos tornasse planos. O que é que se faz com esta ambivalência? Surge aquele pequeno documento a preto e branco [as más fotografias supostamente enviadas ao Atlas Group nos anos 90], que é o testemunho da retirada [do objecto], e, depois, surgem as imagens coloridas, grandes, mas planas. Essa tensão parece-me muito interessante.

Já passaram mais de 15 anos desde o fim do período da guerra. Isso também influencia as suas abordagens?

Não acho que a distância temporal tenha relevância alguma. Basta pensar na estrutura da memória. Cheirase uma rosa e somos levados para quando tínhamos quatro anos. O que é que isso nos diz?! O meu projecto tornou-se-me claro quando comecei a ler Proust. Há a assunção, hoje, de que há uma coisa chamada "memória voluntária" e outra chamada "memória involuntária". Se lhe perguntar o que fez ontem, lembra-se de algumas coisas conscientemente, de outras não, essas só regressam com um encontro involuntário - um cheiro, uma imagem. Isto é o quê? Uma condição neurológica? Ou uma condição histórica? A beleza de Proust, para [Walter] Benjamin, é ele provar que é acidental, que não se pode escolher o objecto e que se pode encontrá-lo ou não. No princípio dos anos 90, em Beirute, logo depois de a guerra acabar, fartei-me de encontrar objectos que me traziam memórias. Estava a ler Proust e pensava: porque é que ele precisa de 900 páginas para recordar uma porção diminuta da sua infância? Porque é que é preciso tanto para ressuscitar o passado? O episódio da madalena [numa das passagens de em "Em Busca do Tempo Perdido", quando o autor mergulha uma madalena numa chávena de chá e o cheiro e o sabor o reportam para a infância (Proust diz que toda a sua vida está naquela chávena)] é perfeito na forma como propõe esse encontro acidental. Tudo isto está ligado: o passado está lá atrás ou estou a vivêlo agora? A estrutura do trauma, por exemplo: o que é que produz um trauma? Não é a qualidade particular de um evento. Tem a ver com a maneira como o vivemos, no sentido em que somos perseguidos por ele e ele emerge por repetição, depois do facto. O trauma diz-nos que temos que abandonar uma noção cronológica do tempo. Porque nada disto tem a ver com o tempo cronológico.