No atelier virtual de Miguel Soares

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Miguel Soares (n.1970) é um dos casos mais atípicos do panorama da arte contemporânea portuguesa. A sua prática artística não é determinada por suportes tradicionais nem privilegia o vídeo ou a instalação.

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Miguel Soares (n.1970) é um dos casos mais atípicos do panorama da arte contemporânea portuguesa. A sua prática artística não é determinada por suportes tradicionais nem privilegia o vídeo ou a instalação.

Na verdade, e sem que isso signifique a exclusão de outras linguagens (afinal venceu a edição de 2007 do Prémio BES photo), podemos dizer que boa parte da sua obra consiste em animações 3D. Ora, esse é o núcleo de trabalhos (produzidos entre 1999 e 2005) que está, a partir de hoje, ao lado de alguns em vídeo, na Culturgest, em Lisboa, numa exposição comissariada por Miguel Wandschneider. A maioria conta ficções e narrativas animadas que, escreve o comissário, "condensam um aturado trabalho de composição figurativa e uma cuidada construção fílmica de pontos de vista, movimentos de câmara e sequências, com um assinalável controlo do tempo cinematográfico".

Mas o cinema não é o único elemento identificável na animação 3D de Miguel Soares. O legado visual da ficção científica e dos jogos de computador assomam até de forma mais visível e também a música marca presença como forma de criar ambientes, potenciar a imersão do espectador, criar realismo ou alterar o ritmo e ordem de um vídeo. Música que tanto pode ser uma canção de Tim Buckley ou uma faixa dos Negativland. Ou do próprio artista, também ele um compositor de temas e bandas sonoras feitas com samples da Internet, televisão, filmes ou outras músicas.

Composta por três núcleos, esta exposição vem revelar (de novo) um artista cuja obra exemplifica não só o uso do computador, da Internet e da animação digital como ferramentas legítimas da criação artística, mas um momento em que a arte portuguesa se viu forçada a abrir as portas à corrente confusa e indisciplinada da cultura pop e audiovisual.

No pátio das Belas Artes

O percurso de Miguel Soares enquanto estudante e jovem artista não foi dos mais lineares. Estudou fotografia durante um ano no Ar.Co., experimentou o desenho num atelier da Galeria Monumental e só depois ingressou (em 1989) na Faculdade de Belas- Artes de Lisboa. Aqui, porém, em vez de seguir pintura ou escultura, optou por Design de Equipamento, com o objectivo de trabalhar com materiais como o plástico, o vidro, os metais e a madeira. Tudo menos ficar preso a meios e técnicas tradicionais.

Quase 20 anos depois, Miguel Soares tenta explicar as razões para o frustrante encontro: "A minha mãe era guia no Museu Gulbenkian e levava-me para lá aos fins-de-semana. Dos dois aos 10 anos, posso dizer que uma parte da minha vida foi passada entre aquelas pinturas. Por isso, se calhar, quando cheguei às Belas-Artes e descobri nos professores uma versão decadente desse mundo, senti desde logo necessidade de procurar outras referências, não só fora do contexto artístico local, mas também noutros campos que não o da arte."

E não era o único. No pátio da faculdade - uma espécie de microcosmo cultural - junta-se a outros estudantes (e a alguns futuros artistas) para conversar sobre arte, cinema, música, ficção científica e política: "Foi aí que conheci e comecei a conviver com o Alexandre Estrela, o Pedro Cabral Santos, o Tiago Fonseca e o Heitor Baptista. Conversávamos sobre o que se passava lá fora, trocávamos ideias sobre os textos que apareciam na 'Flash Art' e na 'Artforum e líamos sobre artistas como Jeff Koons, Ashley Bickerton ou Wim Delvoye." Os universos exteriores ao mundo da arte também eram explorados. "A música, ou certos acontecimentos políticos como a Invasão do Golfo e, sobretudo, o cinema, com o Kubrick no meu caso, à cabeça. Viemos, aliás, descobrir que antes da faculdade tínhamos partilhado, sem sabermos, as salas da Cinemateca e as sessões especiais do Quarteto." Quanto à arte portuguesa, os afectos ficavam-se por nomes da geração anterior: "Admirávamos gente como o Fernando Brito e o Pedro Portugal, que tinham feito o curso anos antes. Eram artistas multifacetados, um pouco como o Eduardo Batarda, de que também gostávamos."

Motivados por interesses comuns e vontade em experimentar organizam no princípio de 1990 exposições na galeria da escola. O entusiasmo embateu na indiferença do meio (só em 1995, com "Wallmate", as coisas se alteraram, ainda que ligeiramente). Miguel Soares teve mais sorte. Em 1991 começou a expor na Galeria Monumental, iniciando uma relação de 11 anos que lhe garantiria a atenção relativa da imprensa.

Sem estar submetido a cânones ou à vigilância das hierarquias das belasartes, continuou avesso à pintura (que tinha exposto nos finais dos anos 80) trabalhando em escultura e instalação antes de se deixar fascinar pelas possibilidades dos jogos de computador: "Quando sugiram no mercado já permitiam criar espaços virtuais, mas eram ainda muito delimitados em termos de resolução e qualidade. Acontece que através dos códigos, que apareciam nas revistas da especialidade, descobri que podia alterar a sua natureza, e isso agradava-me."

A descoberta da animação 3D

A possibilidade de intervir no espaço virtual, controlando todas as suas variáveis para no fim o recriar, está de algum modo no vídeo "Your Mission is a Failure (MechWarrior 2)", que prenuncia já o trabalho com a animação em 3D, como se esta fosse uma paleta audiovisual: "Veio permitir-me criar uma simulação, em que controlo tudo, desde a iluminação ao filme, passando pelas câmaras e lugar das personagens." Um pouco como o pintor solitário no seu atelier? "Nesse sentido sim, mas arrisco dizer que o 3D, pela sua natureza fractal, acaba por ser mais natural que a própria pintura. Afinal funciona sob leis básicas e universais da física e de matemática. Não preciso de misturar tintas para fazer a luz do sol ou uma sombra."

O processo foi, porém, lento e assente na velha ética DIY (Do It Yourself ). Sem formação na área, dedicouse a uma aprendizagem solitária de programas não profissionais de software, experimentando com os meios que tinha à disposição e beneficiando das oportunidades trazidas pela Internet. A sua abordagem revelar-se-ia em Portugal um caso único (e ainda hoje, por vezes, mal compreendido) da relação entre arte e novas tecnologias.

Assim, e passada a euforia (seguida da inevitável ressaca) em torno da cyber-art que dominou a segunda metade dos anos 90, como explicar a distância que resiste entre as duas áreas? "Talvez tenha a ver com pouca abertura dos meios académicos", sugere Miguel Soares. "Sabemos que lá fora há experiências interessantes, como a do Matt Mullicam com o Massachusetts Institute of Technology (MIT), mas de uma maneira o geral os dois campos não se tocam. É raro vermos alguém do design ou das artes interessar-se pela programação ou vice-versa, o que é pena. Gostaria de ter tido a colaboração de programadores. Por outro lado, as galerias e as revistas não se interessam muito por artistas digitais. Limitam-se a ir buscar um ou dois, como o Cory Arcangel e o Miltos Manetas."

Apesar de trabalhar com computadores e imagens virtuais, Miguel Soares não se revê numa posição optimista sobre a tecnologia. Nas narrativas que constituem as suas animações encontramos efabulações inquietantes sobre o futuro da humanidade ("Place in Time", 2005), alusões à acção do homem sobre a natureza ("Space Junk", 2001) ou ao fantasma da guerra ("Time Zones", 2003). A música que as acompanha é outra vertente do trabalho de Miguel Soares, afirmando-o como uma espécie de demiurgo pluridisciplinar interessado em pensar a ilusão das imagens. "É isso que aproxima estes trabalhos da série de fotografias que apresentei no BES Photo: a maleabilidade plástica e manipulação das imagens. O 3D é uma linguagem vectorial que até ser processada e transformada em imagem real, torna as coisas infinitamente escalonáveis. E é essa plasticidade que me interessa para criar objectos, figuras, situações". Como se estivesse num atelier virtual aberto para o mundo.