Bill T. Jones um pedaço da história da América

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Quando o telefone toca, em Amsterdão, Bill T. Jones está num restaurante, mergulhado em vozes e ruído de fundo. Segundos depois está em pé, na rua, preparado para falar. No seu regresso a Portugal, traz trabalhos separados por mais de 20 anos. Um, "Blauvelt Mountain" (2 de Maio, em Serralves), foi feito no arranque da década de 80, ainda com Arnie Zane, o seu companheiro até 1988, ano em que morreu de sida. A produção de "Blind Date" (4 e 5 de Maio, CCB) começou na altura do 11 de Setembro e terminou em 2005. A viagem é entre este dois pólos 

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Quando o telefone toca, em Amsterdão, Bill T. Jones está num restaurante, mergulhado em vozes e ruído de fundo. Segundos depois está em pé, na rua, preparado para falar. No seu regresso a Portugal, traz trabalhos separados por mais de 20 anos. Um, "Blauvelt Mountain" (2 de Maio, em Serralves), foi feito no arranque da década de 80, ainda com Arnie Zane, o seu companheiro até 1988, ano em que morreu de sida. A produção de "Blind Date" (4 e 5 de Maio, CCB) começou na altura do 11 de Setembro e terminou em 2005. A viagem é entre este dois pólos 

Blauvelt Mountain: dois jovens apaixonados, a arte e as vanguardas

"'Blauvelt' é o trabalho de dois jovens interessados em tudo o que tivesse a ver com arte. Na altura, o Arnie e eu estávamos a abraçar tudo o que era poético, romântico, até. Mas os nossos heróis eram decididamente modernistas. O construtivismo era importante para nós. Lembro-me de o Arnie, que era artista plástico, estar fascinado com o [pintor e fundador do Teatro da Bauhaus] Oskar Schlemmer. Estávamos mergulhados numa ideia de 'performance' muito real. Bem vistas as coisas, o que tínhamos eram 10 ou 15 minutos de material que, através de processos de acumulação e repetição, foram transformados numa peça de 35, 40 minutos. As nossas influências eram as do momento. Por exemplo, os realiza dores das vanguardas dos anos 60, início dos anos 70, que estavam constantemente a recordar-nos de que um filme não é mais do que 24 imagens fixas a passar por segundo, uma série de 'frames' isolados que os nossos olhos e o nosso cérebro apreendem como movimento contínuo. Interessava-nos a ideia de pegar numa acção ou numa série de acções simples e parti-las nas suas partes. Não éramos bailarinos líricos. O nosso movimento, tal como a nossa forma de pensar a dança, era muito angular. A juntar a isto, o facto de eu ter tendência para contar histórias. Descendo de gente que conta histórias, é a minha tradição. Nos trabalhos que eu e o Arnie fazíamos ele pensava como um cineasta ou um escultor, eu pensava como um diarista. Estas eram as duas vias de investigação a concorrer para trabalhos como 'Blauvelt'." 

Os últimos vinte anos 

"Entretanto aconteceram muitas coisas, mas há aspectos de 'Blauvelt' que continuam a interessar-me. A repetição, por exemplo. E continuo a ser um fã de artes plásticas acredito no poder da imagem, é por isso que uma coreografia minha, por mais 'física' que seja, tem a ver com imagens destinadas a imprimirem-se na retina do espectador. Acontece que pelo caminho a minha necessidade de falar de aspectos pessoais da vida começou a ser colada demais à minha reputação como artista. Tem a ver com a viagem de procura pessoal que fiz na altura da morte do Arnie. Estive à procura de quem eu era e do que quer dizer existir num mundo o da arte do qual sempre me senti alienado. Foi o mundo da arte que me fez, mas, dentro dele, nunca cheguei a perceber quem eu próprio era. Lembro-me de, em 'Last Supper at Uncle Tom's Cabin', que é de 1990, ter decidido ter a minha mãe no palco a rezar ao seu deus enquanto eu dançava às cadências da sua oração. Não estava a dançar a sua oração estava a dançar com a oração (é uma dança abstracta, no sentido pós-moderno). Fiz isto porque quis falar dos enquadramentos de intenções na arte. Se um artista diz que qualquer coisa é arte, para mim é arte. Pensei que se pegasse na minha mãe e nas suas orações e as pusesse em cena, elas se tornavam outra coisa. Quis acabar com as barreiras entre o que era entendido como cultura erudita e cultura popular. Era uma guerra que eu travava há anos mas para pessoas de horizontes limitados este tipo de atitude tinha sempre a ver com protesto social. É por não terem capacidade de lidar com a variedade riquíssima de vozes que entraram nos nossos discursos nos últimos 150, 200 anos; é por não terem capacidade de lidar com a voz do outro. Eu achei as orações da minha mãe lindíssimas. Sim, tinham um significado concreto, mas também eram património. São as grandes jóias que a minha mãe me passou: a capacidade de transformar qualquer momento num momento espiritual. Acho isso absolutamente consequente e tão importante quanto ouvir Beethoven ou Bach. Quando trabalhava com o Arnie estava constantemente a repescar isto: enquanto dançávamos no nosso registo muito construtivista e pós-moderno, eu contava uma história muito prosaica, humilde. Achava que estava a fazer uma colagem. Graças ao meu público isso [hoje] também é arte arte." 

"Blind Date": trabalho de "um artista mais velho" 

"'Blind Date' tem a ver comigo hoje, um artista mais velho, que lutou estas batalhas anos a fio. Neste momento estou a tentar perceber o que é a minha companhia. Já não é o Bill, nem o Bill com o Arnie, é uma instituição prestes a fazer 25 anos e que está sempre a incluir novos bailarinos. Pergunto sempre a esses jovens bailarinos o que é que julgam que estão a fazer. Quero sujeitá-los ao tipo de consciência que aprendi ao longo dos anos ou a que fui obrigado a ter por fazer parte das vanguardas, por nunca ser entendido e ter que estar sempre a explicar-me. Quero que eles percebam que as suas acções têm consequências. Ainda que muitos preferissem fugir ao mundo. Quando começámos 'Blind Date' pergunteilhes o que é que achavam dos discursos, da altura, sobre liberdade individual, arte e sexualidade. 'Não temos nada a ver com isso. Tornei-me artista precisamente porque não queria ter nada a ver com isso.' O que lhes disse foi que não tinham escolha. Porque são como peixes no Oceano e a água em que nadam é parte de quem são. Acabámos por começar a peça com aquilo de que eles gostam e que conhecem: movimento puro. Depois voltei a perguntar se alguém podia dizer-me o que sentia à cerca das eleições, da vida que estavam a viver, de ser 'uma minoria'. Houve quem se zangasse. Por exemplo, a bailarina que dança uma secção a que chamamos 'O dia perfeito', uma bailarina branca de formação clássica. Disse que não queria falar das eleições mas que podia falar do que considerava o seu objectivo na vida: identificar o dia perfeito. As câmaras estavam a funcionar e gravámos o que ela foi dizendo. Disse que o dia perfeito acontece quando menos se espera e que tem a forma de um círculo. Disse que acontece às vezes ao andar na rua e ao ver alguém que pode ser muito diferente. Duas pessoas que dizem olá, sem mal entendidos, independentemente de serem republicanas ou democratas, e que depois seguem a sua vida, para fazer o que têm a fazer. Eu acho que isto é muito bonito! Um jovem tem direito a isto toda a gente tem direito a isto. Mas, para mim, a questão é o que significa isto num mundo cheio de mentiras, onde tanta gente não tem direito a um 'dia perfeito' e onde tanto do que fazemos é deturpado. Mesmo assim, gravámos o que ela tinha a dizer e deixámo-la dançar. Mais tarde pus outro bailarino, vestido de soldado, a recitar o mesmo texto. É diferente quando se vê isto a sair da boca dele. É isto que eu quero dizer com conteúdos e intenções." 

O que o faz correr 

"É talvez a motivação central da minha vida: o que acontece a estes bailarinos enquanto o mundo muda à volta e tanta gente não consegue encontrar uma verdade absoluta. Eu sei que o Papa é contra o relativismo, mas o relativismo é o mundo que entendo. No mundo que é a minha companhia, onde há um chinês, uma turca, um africano, pretos e brancos, temos que lidar com a diversidade. Eu tentei que essa fosse a mensagem da nossa companhia. A nossa beleza e a forma como conseguimos ser quem somos é pôr as nossas diferenças ao serviço de uma visão. Uma visão que às vezes pode ser um estilo de movimento. Ao longo dos anos encontrámos um estilo de movimento que está sempre em aberto. O nosso vocabulário é um registo constante do que pensamos. Isto é também uma visão social. Não é assim que o mundo devia funcionar? Acho que sim. O Arnie costumava dizer que a companhia devia parecer-se com o mundo em que gostávamos de viver e não com o mundo tal como é. Esta é a poética da nossa diversidade e acho que está muito viva em 'Blind Date'." 

A mudança para Harlem: gesto político?

"Quando era novo e trabalhava com o Arnie, não queríamos estar amarrados a nenhuma comunidade. Gostávamos de fazer parte da cena 'cool' e 'groovy' de Lower Manhattan, mas, mesmo na altura, não vivíamos lá, vivíamos nos subúrbios. À medida que fui sendo visto como um 'maverick' militante do protesto apeteceume dizer que isso não era verdade, que, como toda a gente, queria ter raizes, pertencer a algum lado. O Harlem é a zona mais misturada da grande Nova Iorque. É uma zona cheia de energia. Apeteceu-me ajudar a tornar esta comunidade naquilo que ela promete poder vir a ser. Sou negro. Associar-me a uma comunidade que significa tanto num país tão racista pode ser lido como gesto político, mas também pode ser visto como qualquer coisa de mais lírico. Durante muito tempo tentaram convencer-nos a ir para Brooklyn. Primeiro, eu vivo mais perto do Harlem, depois, na altura, Brooklyn tinha a [companhia da coreógrafa] Twyla Tharp, a Brooklyn Academy of Music [BAM] e uma espécie de gueto crescente de artistas. Eu quero estar num sítio que exija mais ao meu público. O meu público é o público do BAM, do Lincoln Centre quero que se interessem o suficiente pelo meu trabalho para se deslocarem até um lugar sobre o qual não tenham certezas. É assim que vivo, sempre a viajar para sítios sobre os quais não tenho a certeza. Nem é preciso dizer isto: a América neste momento não é muito popular e os artista americanos têm muito a provar. Lidamos com temas muitos nossos, o nosso estilo de movimento é diferente. Não é fácil, mas defendo que temos que estar sintonizados com o mundo." 

11 de Setembro

"Alguns de nós nunca sentimos que podíamos fazer outra coisa [além de agir politicamente]. Quando Arnie e eu fizémos 'Blauvelt Mountain' em Berlim, em 1981, ganhámos o prémio da critica alemã porque, e estou a citar, 'mostrávamos a divisão entre brancos e negros na América'. Basta ver o quão construtivista e o quão modernista a peça é! Achávamos que estávamos a pegar nas convenções da 'contact improvisation', a codificá-las e a criar um trabalho que reflectisse uma visão muito nossa do que tinham sido as vanguardas dos últimos 20 ou 30 anos. Mas o que o público viu foi um negro e um branco a dançar juntos. Houve críticos que se referiram a mim como o 'bailarino-macaco" voltei a ler isso há pouco tempo, diz qualquer coisa como: 'o incrível bailarino-macaco e o seu improvável companheiro'. Eles nem sabiam como ver o que estavam a ver! O que viam era raça. Também houve uma realizadora, uma mulher inteligente, que disse que tínhamos feito um incrível dueto homoerótico. Nessa altura eu nem sabia o que queria dizer homoerótico. Achávamos que estávamos a fazer o que toda a gente fazia nas vanguardas dançar com quem queríamos mas o que esta mulher viu foi dois homens em contacto íntimo: tinha que ser um dueto homoerótico. Nós nunca pudemos ter uma posição neutra no mundo. Quem é que nos estava a ver? Quem escrevia sobre nós? Quem éramos? O que o 11 de Setembro fez foi obrigar [os americanos] a pagar juros pelo que fizemos para ser uma nação rica e poderosa, fez-nos pagar juros pelas conspirações de direita que acreditaram que podiam redefinir as fronteiras do Médio Oriente de acordo com as sua necessidades. Depois fez uma data de gente [artistas] pensar de maneira diferente. Eu, na verdade, tenho é sempre que lutar para fazer trabalhos que sejam neutros porque as pessoas estão sempre a pensar onde estará a minha mensagem. Às vezes a minha mensagem é apenas forma e beleza, as pessoas é que têm dificuldade em vê-lo."