Guillermo del Toro: O realizador no seu labirinto
O horror! O horror!
Com “O Labirinto do Fauno”, o realizador mexicano Guillermo del Toro esteve na selecção oficial de Cannes 2006, recebeu oito nomeações para os Óscares 2007, foi aclamado pela crítica internacional como um cineasta visionário, obteve o maior sucesso de bilheteira jamais registado nos EUA por um filme falado em espanhol.
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O horror! O horror!
Com “O Labirinto do Fauno”, o realizador mexicano Guillermo del Toro esteve na selecção oficial de Cannes 2006, recebeu oito nomeações para os Óscares 2007, foi aclamado pela crítica internacional como um cineasta visionário, obteve o maior sucesso de bilheteira jamais registado nos EUA por um filme falado em espanhol.
E o que faz ele a seguir? Assina uma sequela de super-heróis BD. E logo a seguir vai dirigir a longamente aguardada adaptação do “Hobbit” de Tolkien.
Quando “Hellboy II - O Exército Dourado” estreou nos EUA, em Julho, sentiu-se nas peças da crítica americana (que se tinha rendido colectivamente a “O Labirinto do Fauno” como uma pequena obraprima) um aroma de decepção, como se um jovem cineasta de infinito potencial tivesse abandonado a sua integridade em busca do dólar sagrado. (Chuck Wilson na “Village Voice": “A pergunta fica no ar: Del Toro é um génio louco ou um tarefeiro com imaginação? Ou as duas coisas ao mesmo tempo?”). Mas nem Guillermo del Toro é um jovem cineasta de infinito potencial (com 44 anos, o realizador tem seis longas-metragens em carteira), nem “Hellboy II” é um filme meramente alimentar - já havia sido ele a assinar, em 2004, a primeira aventura no grande écrã da personagem de BD criada por Mike Mignola.
Em entrevista a Mark Kermode, da revista inglesa “Sight & Sound”, em Dezembro de 2006, o realizador era definitivo: “Nunca fiz um filme apenas para Hollywood. ‘'Hellboy'’ representa quem eu sou tanto quanto ‘'Nas Costas do Diabo'’.”
E se o modo como Guillermo del Toro é visto fosse, mais do que um reflexo das suas efectivas escolhas, um reflexo do modo como se olha hoje para o cinema e, sobretudo, para o cinema de género?
Fazer género
A questão é premente, sobretudo num percurso como o do realizador mexicano, em que todos os seus filmes, independentemente das condições de produção, são claramente obras de género - e de um género, o fantástico, cada vez mais levado a sério por uma crítica que tem vindo a re/avaliar como verdadeiros autores cineastas que fizeram nome e carreira dentro das suas fronteiras (Roger Corman, Mario Bava, Dario Argento...), mas que continua a ser visto como “menor” ou “secundário”, apesar da expressiva aclamação recente a filmes de género como a trilogia do “Senhor dos Anéis” ou cineastas como David Cronenberg
O que diferencia Del Toro da concorrência é o pé que ele tem em ambos os lados do Atlântico, alternando filmes “mais pessoais” com grandes produções de estúdio - e impondo em todos uma marca pessoal muito forte que encaixa na perfeição na “política dos autores” que a revista francesa “Cahiers du Cinéma” lançou na década de 1950, e que, para o bem e para o mal, se tornou desde então na base de quase toda a crítica cinematográfica moderna.
Para a “política dos autores”, cristalizada para os redactores da revista na obra de Alfred Hitchcock, havia um estilo, uma abordagem criativa transferidos de filme para filme por um realizador. E não é preciso gostar do cinema de Del Toro para reconhecer fios condutores que vêm desde o seu primeiro filme (e único que dirigiu no seu México natal antes de se radicar definitivamente nos EUA em 1997), “Cronos” (1993): a presença de monstros boschianos e surreais (que o realizador remete para a sua paixão pelos monstros clássicos do cinema americano); um fascínio por mecanismos de relojoaria; a defesa da inocência por oposição à violência e crueldade do mundo exterior; o sacrifício como pedra basilar do combate ao Mal; a invocação constante dos contos de fadas.
Reconhece-se em “Hellboy II” a presença de todos estes pormenores num filme que marca o momento em que as obras “europeia” e “americana” de Del Toro se miscigenam, e em que a fidelidade do realizador à criação original de Mike Mignola não invalida a presença da sua marca pessoal. Desde uma sequência de abertura que narra, precisamente, um conto de fadas animado em marionetas de madeira (e que, claro, tem relevância para o que se vai passar a seguir) até um mercado subterrâneo repleto de criaturas fantásticas e monstruosidades saídas dos míticos cadernos de rascunho que Del Toro transporta sempre consigo, “Hellboy II” é inconfundivelmente um filme do seu autor. E também uma assunção do poder que a aclamação de “O Labirinto do Fauno” lhe valeu em Hollywood, sublinhando o deslumbre da Meca do Cinema por cineastas que conseguem impor uma visão pessoal - não surpreende que o neo-zelandês Peter Jackson, que impôs “O Senhor dos Anéis” e “King Kong” nos seus próprios termos, tenha pessoalmente escolhido Del Toro para dirigir a adaptação de “O Hobbit”.
A pulso
Para o mexicano, esse controle foi ganho a pulso e por experiência própria. Ao seu primeiro filme americano, “Predadores de Nova Iorque” (1997), Del Toro lutou e perdeu com os todo-poderosos irmãos Weinstein da Miramax, que lhe tiraram o filme das mãos - e respondeu à conturbada produção desse filme com “Nas Costas do Diabo” (2001), história de fantasmas rodada em Espanha com produção de Pedro Almodóvar, espécie de antecâmara de “O Labirinto do Fauno”. Depois, vieram “Blade II” (2002), sequela das aventuras do vampiro caçador de vampiros Wesley Snipes, e o primeiro “Hellboy” (2004) - filmes onde Del Toro provou a sua capacidade para trabalhar dentro do sistema de Hollywood sem por isso perder a sua liberdade criativa.
No entanto, nem a recepção crítica a “Nas Costas do Diabo”, nem os resultados comerciais de “Blade II” e “Hellboy” ajudaram a viabilizar “O Labirinto do Fauno”, que, como explicou à “Sight & Sound”, foi a mais difícil e dolorosa de todas as suas produções, rodada em Espanha com um orçamento minúsculo depois de um conturbado processo de financiamento. “Foi a primeira vez que disse vou fazer este à minha maneira, até ao fim, doa o que doer. Os financiadores abandonaram-me, toda a gente envolvida na minha carreira dizia que [fazer este filme] era o maior erro que eu podia cometer.” Del Toro fez ponto de honra não ceder um milímetro e o triunfo crítico e comercial do filme veio dar-lhe razão.
Suficiente, pelo menos, para a Universal dar luz verde a uma sequela de “Hellboy” que o realizador descrevia como “mais experimental e mais pessoal, mesmo que obviamente pop”, que custou mais do que as modestas receitas americanas de bilheteira do primeiro filme, sem a presença de um único actor de peso para garantir alguma âncora promocional. (O maior sucesso comercial de Del Toro nos EUA continua a ser “Blade II”, que, com 85 milhões de dólares de receitas em 2002, ficou ainda assim aquém do “número mágico” de 100 milhões que qualquer sucesso que se preze deve ultrapassar.) Mas é esse o preço que se paga por se querer fazer negócio com um realizador visionário e ter um filme de superheróis diferente.
Mas e se fosse precisamente esse o problema daqueles que resmungam que Del Toro se vendeu - que este filme não seja o “sellout” que eles esperavam mas sim um filme tão pessoal como os anteriores?