Alfred Brendel despede-se
Alfred Brendel ainda não tinha pisado o palco, mas o ambiente era já de forte emoção. Embora conhecedor, o público belga costuma ser frio mas desta vez a ocasião era especial. No dia 17, a sala principal do Palais des Beaux Arts estava a abarrotar para ouvir o pianista pela última vez no âmbito da sua digressão de despedida por várias cidades europeias, que também inclui a Fundação Gulbenkian, em Lisboa, no domingo. Uma forte ovação saudou a entrada de Brendel, que se viu rodeado de público, já que foram colocadas cadeiras em cima do palco de modo a contemplar uma assistência maior. Piano e pianista pareciam uma pequena ilha, que concentrava todas as atenções. Nas primeiras filas sentia-se o pulsar da sua respiração e o seu característico hábito de sussurrar algumas das linhas melódicas.
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Alfred Brendel ainda não tinha pisado o palco, mas o ambiente era já de forte emoção. Embora conhecedor, o público belga costuma ser frio mas desta vez a ocasião era especial. No dia 17, a sala principal do Palais des Beaux Arts estava a abarrotar para ouvir o pianista pela última vez no âmbito da sua digressão de despedida por várias cidades europeias, que também inclui a Fundação Gulbenkian, em Lisboa, no domingo. Uma forte ovação saudou a entrada de Brendel, que se viu rodeado de público, já que foram colocadas cadeiras em cima do palco de modo a contemplar uma assistência maior. Piano e pianista pareciam uma pequena ilha, que concentrava todas as atenções. Nas primeiras filas sentia-se o pulsar da sua respiração e o seu característico hábito de sussurrar algumas das linhas melódicas.
Com 77 anos, Brendel resolveu deixar de tocar em público, tendo anunciando há um ano uma preenchida agenda de despedida, que termina a 18 de Dezembro em Viena, com a interpretação do Concerto para Piano nº9, de Mozart, com a Filarmónica de Viena, sob a direcção de Sir Charles Mackerras. Nos últimos meses, esta obra tem alternado com o programa a solo que apresentou em Bruxelas, o mesmo que tocará em Lisboa. Dele fazem parte os compositores mais emblemáticos do seu repertório, representantes da primeira escola de Viena: Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert.
Pianista intelectual?
"Pertenço à tradição em que a obraprima diz ao intérprete o que é que ele deve fazer e não à tradição em que o intérprete diz à obra como ela deve soar ou como é que o compositor a devia ter composto." Esta frase, retirada do documentário da BBC "Alfred Brendel: Man & Mask", resume a sua atitude perante a música. O rigor, a atenção ao texto e o respeito pelo compositor são linhas de coerência inabalável que sempre acompanharam Brendel. Esta atitude analítica valeu-lhe o epíteto de "pianista intelectual", reforçado pelos seus múltiplos interesses culturais, pela publicação de importantes ensaios sobre música e de livros de poesia humorística, como "One Finger Too Many" e "Cursing Bagels" (na tradução inglesa). Mas não se pense que as suas interpretações são puro exercício racional. Brendel é, antes de mais, um mediador privilegiado que nos coloca perante a transcendência da música sem colocar o seu ego acima dela. Não é através da emoção fugaz da superficialidade ou dos efeitos tecnicamente espectaculares que nos surpreende, mas por via de algo mais profundo, decorrente de uma longa maturação de cada obra.
Em Bruxelas, tocou as Variações em Fá menor Hob, XVII:6, de Haydn, de forma clarividente, esculpindo cada linha e cada detalhe da articulação e da ornamentação, delimitando planos sonoros e contrastes de carácter com meticulosa precisão. Sobre a interpretação de Mozart, escreveu um dia que é preciso fazer "cantar e falar" a música e foi isso que fez com Sonata em Fá maior K. 533/494. Mas se a sua prestação nestas obras não trouxe demasiadas surpresas dentro da sua inabalável solidez, na Sonata nº13, op. 27, nº1, de Beethoven, atingiu momentos inesquecíveis, que mostram que a imaginação musical é também um dos seus atributos. O título "Quasi una fantasia" foi levado à letra na evocação de um certo fluxo improvisatório ou da tradução de ambiências misteriosas (como as texturas arpejadas do Andante inicial) através de uma "toucher" delicada e de um apurado controlo da dinâmica.
Para a segunda parte ficou a derradeira Sonata de Schubert (nº 23, D. 960), obra esmagadora que neste caso assume carga simbólica ainda mais forte. Mais uma vez o pianista não apostou no sensacionalismo do virtuosismo técnico ou da pujança dinâmica, preferiu saborear a música em profunda instrospeção.
No final a sala levantou-se em bloco e os aplausos sucederam-se por vários minutos, levando a três "encores" tocados de forma sublime: o Improviso nº3, de Schubert; "Au lac de Wallenstadt", de Liszt, e uma das transcrições de Bach feitas por Busoni. À saída, formou-se uma longa fila para pedir um último autógrafo, mas Brendel deu indicações prévias de que não assinaria programas ou discos (tal como não deu entrevistas), apenas trocaria breves palavras com quem o quisesse cumprimentar.
A sua figura circunspecta, que se inquieta e repreende quando alguém tosse ou faz barulho na assistência, pouco deixa revelar do intelectual brilhante de espírito curioso que se interessa pelos assuntos mais díspares (da arquitectura românica ao movimento Dada, de Shakespeare aos "cartoons" de Charles Addams) e que um dia disse fazer do riso um dos seus passatempos.
Nascido em 1931 na Morávia, começou cedo os seus estudos de piano, mas não foi um menino-prodígio. Desenvolveu a sua carreira passo a passo, tendo efectuado as suas primeiras gravações nos anos 50. Na década de 1960 converteu- se no primeiro pianista a gravar a integral da obra de Beethoven e depois disso foi construindo uma discografia imensa, que constitui um dos grandes monumentos artísticos do século XX e que perpetuará a sua memória depois do último acorde que soar em Viena no dia 18.
O Ípsilon viajou a convite da Gulbenkian