Pequenos desacertos do real
Liudmila Ulítskaia, nascida em 1943 no Azerbeijão (de família russa judaica da burguesia soviética instruída), cedo foi viver para Moscovo. Actualmente, com Vladimir Sorokin e Viktor Pelevin, é uma das figuras mais respeitadas da literatura russa surgida logo após o desmembramento da antiga URSS. Formada em Biologia, trabalhou como geneticista em Moscovo até ser despedida pelo governo soviético por se interessar demasiado por literatura ocidental. No final da década de 80 começou a publicar e desde então (tem quinze obras, livros infantis, contos, romances e peças de teatro) os seus livros têm sido traduzidos em várias línguas. Por cá, a Campo das Letras publicou no ano passado a novela "Sónetchka" (o nome da autora foi então vertido do alfabeto cirílico de modo diferente, como "Ludmila Ulitskaya"; a grafia varia consoante a língua de chegada), e agora a Relógio d´Água acaba de traduzir também do russo o romance "Mentiras de Mulher" e anuncia outro para breve, "Um Funeral Divertido". Classificar "Mentiras de Mulher" como um "romance" é apenas por uma questão de facilidade de linguagem, pois é mais um "patchwork" narrativo, uma "manta de retalhos" de seis momentos particulares da vida da personagem principal, Génia; episódios esses, encadeados, que têm a singularidade de serem atravessados por mentiras contadas por mulheres que cruzam a vida de Génia. São seis variações para um tema: a mitomania no feminino. É pena que a edição portuguesa não inclua um prefácio escrito pela própria Liudmila Ulítskaia em que ela classifica o livro como um "romance em episódios". Nesse prefácio, estabelece as diferenças entre a natureza das mentiras ditas pelos homens e a das que são inventadas pelas mulheres; pergunta ela se podemos comparar as grandes mentiras masculinas, que são ditas em momentos estratégicos, que são arquitectadas, com um interesse directo, que são tão velhas como a resposta dada por Caim, com as pequenas mentiras das mulheres, nas quais não se vislumbra qualquer intenção, boa ou má, nem mesmo nenhuma esperança de vir a obter com elas uma qualquer vantagem. A questão não deixa de ser retórica, pois haverá sempre alguma razão para as mentiras femininas, por pequenas que sejam. Quanto mais não seja a de atrair a atenção, de ser finalmente escutada, de se sentir diferente. E é isso que acontece logo no primeiro "episódio": corre o ano de 1978, Génia está de férias com o filho numa estância balnear na Crimeia quando chega Irene, ruiva exuberante, russo-inglesa, filha de um espião comunista da Irlanda britânica. As duas mulheres encontram-se todas as noites, já tarde, bebericando vinho do Porto (feito na Crimeia! - os tradutores optaram por escrever sempre "Portwein", que é a palavra alemã para o nosso Porto) e a exuberante Irene vai contando as desgraças pelas quais passou (no final, quatro filhos e um marido mortos em diversas situações), levando Génia às lágrimas e a comparar o destino desta mulher com o da heroína de Tolstoi ("o suicídio à moda antiga de Anna Karénina empalidecia e tornava-se uma espécie de capricho de senhora sem miolos"). Génia descobre que tudo o que ouviu é mentira e sem coragem para mais nada decide partir de camioneta para outro lugar. O "episódio" seguinte, "O irmão Iúra", tem lugar cinco anos depois. Génia está outra vez em férias estivais, desta vez numa aldeia e com quatro crianças a seu cargo. E está também a filha da senhoria, Nádia, de dez anos de idade. Nádia inventa um irmão mais velho e mente "de maneira muito divertida e invulgar". Conta como ajudou a apanhar um assassino, como viu um ovni e como foi estar em Espanha a participar num filme. A mãe confirma tudo, à parte a existência do irmão de Nádia. Os "episódios" seguintes narram a mitomania de uma rapariga de 13 anos que diz ter um caso amoroso com um homem de quarenta, casado, pintor famoso e familiar de Génia. A história de uma jovem futura engenheira que descobre a poesia com uma velha professora de literatura, e que após a morte desta descobre que toda a poesia que lhe lera como se fosse sua, era afinal dos grandes poetas russos do início do século XX. Há também a aventura suiça de Génia, que tendo sido contratada para escrever um guião de um documentário, tem que entrevistar várias prostitutas russas que lhe contam todas a mesma história: filhas de um comandante da marinha morto num acidente, violadas pelo padrasto vêem-se obrigadas a sair de casa e a "fazerem-se à vida". Ulítskaia construiu um brilhante "romance" com dramas femininos e belezas sonhadas, com amores não correspondidos e algum desespero, com personagens que procuram compensar o destino, por vezes miserável, com um pouco de sonho. São histórias ternas que relevam do sentido trágico da condição humana.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Liudmila Ulítskaia, nascida em 1943 no Azerbeijão (de família russa judaica da burguesia soviética instruída), cedo foi viver para Moscovo. Actualmente, com Vladimir Sorokin e Viktor Pelevin, é uma das figuras mais respeitadas da literatura russa surgida logo após o desmembramento da antiga URSS. Formada em Biologia, trabalhou como geneticista em Moscovo até ser despedida pelo governo soviético por se interessar demasiado por literatura ocidental. No final da década de 80 começou a publicar e desde então (tem quinze obras, livros infantis, contos, romances e peças de teatro) os seus livros têm sido traduzidos em várias línguas. Por cá, a Campo das Letras publicou no ano passado a novela "Sónetchka" (o nome da autora foi então vertido do alfabeto cirílico de modo diferente, como "Ludmila Ulitskaya"; a grafia varia consoante a língua de chegada), e agora a Relógio d´Água acaba de traduzir também do russo o romance "Mentiras de Mulher" e anuncia outro para breve, "Um Funeral Divertido". Classificar "Mentiras de Mulher" como um "romance" é apenas por uma questão de facilidade de linguagem, pois é mais um "patchwork" narrativo, uma "manta de retalhos" de seis momentos particulares da vida da personagem principal, Génia; episódios esses, encadeados, que têm a singularidade de serem atravessados por mentiras contadas por mulheres que cruzam a vida de Génia. São seis variações para um tema: a mitomania no feminino. É pena que a edição portuguesa não inclua um prefácio escrito pela própria Liudmila Ulítskaia em que ela classifica o livro como um "romance em episódios". Nesse prefácio, estabelece as diferenças entre a natureza das mentiras ditas pelos homens e a das que são inventadas pelas mulheres; pergunta ela se podemos comparar as grandes mentiras masculinas, que são ditas em momentos estratégicos, que são arquitectadas, com um interesse directo, que são tão velhas como a resposta dada por Caim, com as pequenas mentiras das mulheres, nas quais não se vislumbra qualquer intenção, boa ou má, nem mesmo nenhuma esperança de vir a obter com elas uma qualquer vantagem. A questão não deixa de ser retórica, pois haverá sempre alguma razão para as mentiras femininas, por pequenas que sejam. Quanto mais não seja a de atrair a atenção, de ser finalmente escutada, de se sentir diferente. E é isso que acontece logo no primeiro "episódio": corre o ano de 1978, Génia está de férias com o filho numa estância balnear na Crimeia quando chega Irene, ruiva exuberante, russo-inglesa, filha de um espião comunista da Irlanda britânica. As duas mulheres encontram-se todas as noites, já tarde, bebericando vinho do Porto (feito na Crimeia! - os tradutores optaram por escrever sempre "Portwein", que é a palavra alemã para o nosso Porto) e a exuberante Irene vai contando as desgraças pelas quais passou (no final, quatro filhos e um marido mortos em diversas situações), levando Génia às lágrimas e a comparar o destino desta mulher com o da heroína de Tolstoi ("o suicídio à moda antiga de Anna Karénina empalidecia e tornava-se uma espécie de capricho de senhora sem miolos"). Génia descobre que tudo o que ouviu é mentira e sem coragem para mais nada decide partir de camioneta para outro lugar. O "episódio" seguinte, "O irmão Iúra", tem lugar cinco anos depois. Génia está outra vez em férias estivais, desta vez numa aldeia e com quatro crianças a seu cargo. E está também a filha da senhoria, Nádia, de dez anos de idade. Nádia inventa um irmão mais velho e mente "de maneira muito divertida e invulgar". Conta como ajudou a apanhar um assassino, como viu um ovni e como foi estar em Espanha a participar num filme. A mãe confirma tudo, à parte a existência do irmão de Nádia. Os "episódios" seguintes narram a mitomania de uma rapariga de 13 anos que diz ter um caso amoroso com um homem de quarenta, casado, pintor famoso e familiar de Génia. A história de uma jovem futura engenheira que descobre a poesia com uma velha professora de literatura, e que após a morte desta descobre que toda a poesia que lhe lera como se fosse sua, era afinal dos grandes poetas russos do início do século XX. Há também a aventura suiça de Génia, que tendo sido contratada para escrever um guião de um documentário, tem que entrevistar várias prostitutas russas que lhe contam todas a mesma história: filhas de um comandante da marinha morto num acidente, violadas pelo padrasto vêem-se obrigadas a sair de casa e a "fazerem-se à vida". Ulítskaia construiu um brilhante "romance" com dramas femininos e belezas sonhadas, com amores não correspondidos e algum desespero, com personagens que procuram compensar o destino, por vezes miserável, com um pouco de sonho. São histórias ternas que relevam do sentido trágico da condição humana.