João Coração
O género baladeiro romântico vagabundo vagamente aristocrático tem longa linhagem, família em França e exímios representantes em tão díspares sujeitos de garganta rouca como Daniel Melingo ou Chet Baker - e tem agora um parente em Portugal, João Coração. "Nº 1, Sessão de Cezimbra", disco de estreia do homem com aliteração no nome, é daqueles raros exemplares que parecem a cada espaço desmancharse, em que os instrumentos vagueiam, aéreos e perdidos, até por acaso e sorte se encontrarem num refrão e darem um novo sentido a tudo o que cada canção tinha sido até aí. Isso é nítido desde a abertura, "Luz III", cuja construção passa, inicialmente, por uma guitarra e um delicado vibrafone, rumina a passo lento, é senhora de caves fumarentas, e depois cresce com as trompetes, torna-se jazzy e cambaleante e extremamente sedutora. Todo o disco segue o mesmo esquema: Coração canta e os músicos vão atrás, seguindo o passo ébrio da voz do trovador, um pinga-amor com as mão cheias de recordações de mulheres e um pé na estrada - este é o mote e a glosa que o acompanha é o trabalho de decoração para caiar as canções de tons cool desmazelados: "Agarra em mim" funda-se na voz sussurrada e ampara-se numa figura desenhada pelo órgão Rhodes, arrastando-se em elegias fúnebres; em "Conheci uma menina" bombos, acordeões e guitarra eléctricas tropeçam uns nos outros em passo solene; "À volta do rio" tem o mesmo andamento pesaroso, com a harmónica e a melódica a trazerem fundura, até todos os instrumentos se reunirem para um final com drama. Coração e banda movem-se por tons folclóricos vagamente italianizados, vagamente afrancesados, vagamente aportuguesados (há momentos em que nos lembramos de Fausto), casando ukeleles com pianos de brincar, órgãos Hammond e Rhodes com bombos, coros embriagados com guitarra eléctricas, harmónios com rimas harmónicas, melódicas, um acordeão e braguesas - é esse o charme do disco: unir o "cool" e o tradicional, o lo-fi e o arranjo cuidado. Resultado: em 13 temas há duas canções francamemte dispensáveis ("Nada a temer" e "Final em casa") e pelo meio meia-dúzia de notáveis canções. Podia ter sido um grande EP, é um belo disco.
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O género baladeiro romântico vagabundo vagamente aristocrático tem longa linhagem, família em França e exímios representantes em tão díspares sujeitos de garganta rouca como Daniel Melingo ou Chet Baker - e tem agora um parente em Portugal, João Coração. "Nº 1, Sessão de Cezimbra", disco de estreia do homem com aliteração no nome, é daqueles raros exemplares que parecem a cada espaço desmancharse, em que os instrumentos vagueiam, aéreos e perdidos, até por acaso e sorte se encontrarem num refrão e darem um novo sentido a tudo o que cada canção tinha sido até aí. Isso é nítido desde a abertura, "Luz III", cuja construção passa, inicialmente, por uma guitarra e um delicado vibrafone, rumina a passo lento, é senhora de caves fumarentas, e depois cresce com as trompetes, torna-se jazzy e cambaleante e extremamente sedutora. Todo o disco segue o mesmo esquema: Coração canta e os músicos vão atrás, seguindo o passo ébrio da voz do trovador, um pinga-amor com as mão cheias de recordações de mulheres e um pé na estrada - este é o mote e a glosa que o acompanha é o trabalho de decoração para caiar as canções de tons cool desmazelados: "Agarra em mim" funda-se na voz sussurrada e ampara-se numa figura desenhada pelo órgão Rhodes, arrastando-se em elegias fúnebres; em "Conheci uma menina" bombos, acordeões e guitarra eléctricas tropeçam uns nos outros em passo solene; "À volta do rio" tem o mesmo andamento pesaroso, com a harmónica e a melódica a trazerem fundura, até todos os instrumentos se reunirem para um final com drama. Coração e banda movem-se por tons folclóricos vagamente italianizados, vagamente afrancesados, vagamente aportuguesados (há momentos em que nos lembramos de Fausto), casando ukeleles com pianos de brincar, órgãos Hammond e Rhodes com bombos, coros embriagados com guitarra eléctricas, harmónios com rimas harmónicas, melódicas, um acordeão e braguesas - é esse o charme do disco: unir o "cool" e o tradicional, o lo-fi e o arranjo cuidado. Resultado: em 13 temas há duas canções francamemte dispensáveis ("Nada a temer" e "Final em casa") e pelo meio meia-dúzia de notáveis canções. Podia ter sido um grande EP, é um belo disco.