O regresso de um cineasta clandestino

Foto

Na "nova vaga" polaca dos anos 60, Jerzy Skolimowski (n. 1938) foi, com Roman Polanski, um dos nomes centrais. Andrzej Wajda ou Andrzej Munk, que eram um pouco mais velhos, já tinham posto o cinema polaco na primeira linha da atenção internacional, fazendo dele um instrumento de reflexão sobre a traumática história recente da Polónia. Mas os jovens, como Skolimowski refere nesta entrevista, trouxeram a essa reflexão a vida contemporânea.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Na "nova vaga" polaca dos anos 60, Jerzy Skolimowski (n. 1938) foi, com Roman Polanski, um dos nomes centrais. Andrzej Wajda ou Andrzej Munk, que eram um pouco mais velhos, já tinham posto o cinema polaco na primeira linha da atenção internacional, fazendo dele um instrumento de reflexão sobre a traumática história recente da Polónia. Mas os jovens, como Skolimowski refere nesta entrevista, trouxeram a essa reflexão a vida contemporânea.

Se Polanski saiu muito cedo da Polónia, Skolimowski ficou ainda alguns anos. O tempo suficiente para - em belíssimos filmes como "Walkower" ou "Bariera" - deixar alguns retratos delicados e pungentes de uma juventude sonhadora mas manietada pelo cinzentismo da vida na Polónia comunista.

Mas no final dos anos 60 Skolimowski já não estava em condições de fazer cinema na Polónia, partindo então (com... "Le Départ", feito na Bélgica, com Jean-Pierre Léaud) para uma carreira "globetrotter" que teve paragens fundamentais em Inglaterra e nos EUA (onde chegou a fixar residência). A Polónia foi, várias vezes, uma preocupação. No princípio dos anos 80, quando Lech Walesa e o "Solidarnosc" impunham ao regime uma agitação sem precedentes, Skoliwmoski voltou ao filme que directamente provocou o seu exílio ("Mãos ao Ar", em que "foi longe de mais" para a censura polaca, como conta nesta entrevista), remontando-o e finalmente exibindo-o. E a seguir, em Londres, rodou "Moonlighting", cuja acção decorre em simultâneo com a instauração da lei marcial na Polónia.

Mas, se tem vários pontos altos e alguns filmes singularíssimos, as circunstâncias desta carreira internacional de Skolimowski raramente o satisfizeram plenamente. Em 1991 ensaiou um regresso ao país natal, com uma adaptação de um livro de Witold Gombrowicz ("Ferdydurke") que há muitos anos sonhava filmar. Correu mal, e além de "flop" na bilheteira constituiu, para o cineasta, um insucesso artístico que muito o desgostou. Decidiu parar e dedicar-se à pintura, actividade que sempre o apaixonou (também escreveu muito na juventude, poesia e prosa, e também foi "boxeur"). Apareceu como actor em alguns filmes (as "Promessas Perigosas", de Cronenberg, por exemplo), mas falava como quem não tem saudades nenhumas do cinema.

Finalmente decidiu voltar. Em boa hora, com o belo "Quatro Noites com Anna", a história de um apagado funcionário de um crematório obcecado com a enfermeira que vive na casa em frente. "Voyeurismo" como devoção, impotência como amor infantil, a morte um pouco por todo o lado, em crematórios e cemitérios, e uma fortíssima ideia de cinema que muito directamente liga "Quatro Noites com Anna" ao ambiente dos primeiros anos da obra de Skolimowski: a clandestinidade do olhar, e tudo o que o oprime. Por exemplo, como no derradeiro plano do filme, um muro.

Esteve mais de quinze anos sem filmar. Em mais do que uma ocasião afirmou não sentir vontade de voltar ao meio do cinema, e disse que a pintura lhe dava toda a satisfação artística de que precisava. O que é que o fez voltar a ter vontade de realizar um filme?

Foram 17 anos longe do cinema. E as razões têm muito que ver com o filme que fiz há 17 anos ["Ferdydurke", baseado em Gombrowicz], de que não gostei. Era um projecto artisticamente ambicioso, mas resultou bastante idiota. Então pus-me a pensar: "Estou no caminho errado, tenho que reflectir muito bem sobre o que vou fazer a seguir". E resolvi fazer uma pausa. Nunca previ que durasse 17 anos. Mas acontece que tive, finalmente, tempo para me dedicar à pintura de maneira profissional. Mais do que o cinema, a pintura é a paixão da minha vida. Sempre pintei, mas nunca tinha tido oportunidade de o fazer profissionalmente. Nos últimos anos pude viver da pintura, com sucesso. A pintura não impõe nenhuma limitação à criatividade, não exige nenhuma condescendência, ao contrário do cinema. Permite-me pintar para mim próprio, para meu próprio prazer. Assim, chegou um momento em que me voltei a sentir artista. E então pensei: "OK, talvez esteja pronto para voltar a fazer um filme". Senti-me suficientemente forte para fazer um filme para mim próprio, a pensar no meu prazer de espectador durante 90 minutos numa sala de cinema.

Falou de "Ferdydurke" como ponto decisivo, mas a sua frustração já se vinha acumulando há anos, não é verdade? "Torrents of Spring" [de 1989, baseado em Turguenev] também não parecia um filme muito pessoal, não parecia pensar muito no seu próprio prazer de espectador...

Infelizmente... Devo ter feito aí umas, quê?, 17 longas-metragens [15 será o número correcto, contando já com "Quatro Noites com Anna"], e metade delas são boas. Algumas foram aclamadas em festivais, ganhei prémios em Berlim e em Veneza. Mas também fiz alguns filmes de que não me orgulho nada. E foram estes que me impeliram a repensar toda a minha carreira, a reflectir sobre as razões por que fiz quer os meus bons filmes, quer aqueles de que não me orgulho. E as razões destes últimos são simples: foi para fazer dinheiro. Ora isso não é o meu forte.

Por causa das "condescendências" de que falou há pouco?

Quando tenho que transigir, deixo de ser um artista. E eu só sou bom a ser artista. Essa é que é a verdade.

Consegue olhar para a sua obra e escolher o filme que mais se orgulha de ter feito?

Alguns dos meus filmes polacos. Também gosto de alguns dos meus filmes britânicos. "Moonlighting" [1982], com Jeremy Irons, acho que é muito bom. "O Uivo" [1978] e "Adolescente Perversa"/"Deep End" [1971] também são bons. Mesmo alguns dos meus filmes americanos: julgo que "O Navio Farol" [1986], com Robert Duvall e Klaus Maria Brandauer, foi um filme bem conseguido. Mas "Quatro Noites com Anna" é o que se aproxima mais daquilo que sempre quis fazer em cinema, é o que corresponde mais exactamente ao que queria ver no ecrã.

Pela história, pela atmosfera, e mesmo formalmente, "Quatro Noites com Anna" lembra os seus filmes polacos dos anos 60. Dá a impressão de ser um filme que já andava consigo há muito tempo...

De certa maneira, "Quatro Noites com Anna" é um regresso ao cinema da minha juventude. Nos anos 60 e 70 pude fazer filmes como um artista, enquanto jovem cineasta embalado pela "nouvelle vague". Depois dessa época foi muito difícil fugir ao aspecto comercial. Agora foi o regresso às raízes: um filme feito a pensar no meu prazer, sem outras interferências.

O seu discurso ecoa o de vários outros cineastas do antigo Bloco de Leste, que depois do cansaço causado pela censura política nos países natais vieram a descobrir que no Ocidente lhes era imposto um outro tipo de censura, uma "censura comercial", por assim dizer.

É verdade. Nos meus filmes polacos estava sempre sujeito à censura. Tinha sempre que calcular muito bem quão longe podia ir. Uma vez fui longe de mais, com "Rece do Gory" ["Mãos ao Ar", 1968]. Era um filme tão subversivo que não podiam permitir que fosse exibido. E praticamente fui constrangido a deixar a Polónia. Vi-me assim, de repente, forçado a ganhar a vida no mundo ocidental, fazendo aquilo que sabia fazer, filmes. E dei por mim sujeito a uma censura diferente, a da pressão económica. É natural, quando se investem milhões num filme, quer-se que eles sejam recuperados. Mas descobri que isto me causava mais desconforto do que a pressão ideológica a que estava habituado. Era mais fácil manipular e enganar a censura política. E no Ocidente nunca consegui enganar o "box-office"...

Nalgumas ocasiões conseguiu. "Moonlighting" foi um filme bem-sucedido...

Sim, houve um par de filmes que correram bem, e "Moonlighting" foi um deles. Jeremy Irons era um actor popular, a sua presença ajudou. "O Uivo" também correu bem. E mesmo "O Navio Farol", que fiz nos EUA, nunca foi pensado para uma grande assistência e correu relativamente bem. Aliás, pude fazê-lo com uma liberdade de espírito inesperada, tratando-se de Hollywood.

Começou a fazer cinema num momento especial do cinema polaco, a viragem dos anos 50 para os 60. Andrzej Wajda ou Andrzej Munk já tinham feito filmes bastante famosos, e logo a seguir apareceram os jovens como você ou Roman Polanski.

Sim, mas Wajda, Munk ou Jerzy Kawalerowicz faziam sobretudo filmes históricos. "Pharaon" [Kawalerowicz], por exemplo. Não faziam filmes que mostrassem o presente, a vida contemporânea. Aquilo que os mais novos, Polanski primeiro com "A Faca na Água" [1962], e a seguir eu, fizeram foi trazer para a frente a cena contemporânea. O que foi algo de original no cinema polaco.

Mas consegue pensar numa razão para esse período tão frutífero do cinema polaco, que nunca se repetiu?

Julgo que é uma questão de talento. Uma geração tem muitas pessoas talentosas, e talvez a geração seguinte não tenha nenhuma. O cinema polaco continuou a ter bons valores, como Kieslowski, que foi um dos maiores. Mas depois dele não apareceu ninguém. Posso apenas desejar que alguns dos muitos jovens cineastas polacos da actualidade se consigam impor.

Mas nessa época vocês colaboravam muito, e participavam nos filmes uns dos outros. O seu caso, por exemplo: trabalhou em filmes de Wajda e de Polanski.

Sim, nesse tempo os cineastas formavam uma comunidade, e encontrávamo-nos muitas vezes, discutíamos os filmes uns dos outros. Julgo que isso deixou de acontecer. As pessoas tornaram-se mais isoladas, escondidas umas das outras. Provavelmente é um sinal dos tempos. Nos anos 60, para além de formarmos uma espécie de família, havia uma urgência: estávamos a enviar uma mensagem à sociedade polaca, a dizer que as coisas talvez fossem um pouco diferentes do que pretendia a propaganda oficial. Esta espécie de contrabando de ideias era um propósito comum, que nos unia.

Os próprios constrangimentos à liberdade de expressão funcionavam como motivação?

De certa maneiram a censura inspirava-nos. Éramos como "partisans", a inventar maneiras de enganar a censura. Foi uma época entusiasmante.

Falou de uma família. Dentro dela, Polanski era de quem estava mais próximo. As vossas carreiras, condenadas à errância a partir de certa altura, têm muitas coisas em paralelo.

A minha amizade com Polanski vem de há muitos, muitos anos. Conhecemo-nos muito jovens. Éramos uma espécie de "groupies" dos músicos de jazz. Na altura, anos 50, a música jazz era quase ilegal na Polónia. Era música americana, não tinha lugar na cultura oficial. Era tocada em clubes clandestinos, em caves, e havia um grupo de jovens que frequentava esse meio assiduamente. Roman era um deles, foi assim que nos conhecemos. Entrei para a escola de cinema no ano em que Roman acabou o seu curso, e era uma espécie de assistente da direcção. Foi ele que me fez o exame de admissão. Depois perguntou-me: "Queres escrever comigo um argumento?". E foi "A Faca na Água". Escrevemo-lo em três dias e três noites. Depois ele saiu do país, eu fiz alguns filmes e saí, por minha vez, do país. E aqui estamos.

 

A FACA NA ÁGUA 1962 (de Roman Polanski)

Skolimowski, então com 24 anos, já tinha escrito e realizado algumas curtas, e trabalhado num argumento para um fi lme de Andrzej Wajda. Para Polanski, cinco anos mais velho, tinha chegado a altura da primeira longa. Com Skolimowski (e ainda um terceiro argumentista, Jakub Goldberg) escreveu "A Faca na Água", história de um casal em férias (um passeio de barco) e de um estranho que lhes vem virar a relação do avesso. Frio mas febril, o fi lme seria condenado por "mostrar aspectos negativos da vida polaca", e Polanski proibido de fi lmar. Skolimowski, por esta, ainda escapou.

WALKOWER 1965

Depois de uma primeira longa, "Rysopis" (1964), Jerzy assinava em "Walkower" (título que é uma aliteração do inglês "walk over") a obra-prima do seu período polaco. O realizador interpretava o protagonista (um boxeur, como ele tinha sido) e as suas deambulações em circuito fechado (o que era sublinhado pelos movimentos de câmara) no universo vagamente subterrâneo do boxe e das apostas. Elegia de uma juventude sem muita coisa por que viver, era um fi lme em contenção de uma energia progressivamente libertada nos fi lmes seguintes, até ao "ponto de não retorno" constituído por "Rece do Gory".

LE DÉPART 1967

O primeiro filme de Skolimowski na Europa ocidental, depois de "Rece do Gory" o ter feito entrar na lista negra das autoridades polacas. Feito na Bélgica, e com Jean-Pierre Léaud como protagonista: Skolimowski saía da Polónia ao encontro de um "ícone nouvelle vague". O filme, com o absurdo servido em tempero, segue um candidato a piloto de automóveis à procura da máquina mais potente. Em algum grau, autobiografi a: um cineasta exilado à procura de um cinema mais rico (e mais livre), repentinamente lançado no meio da "abastança" dos europeus ocidentais e dos seus belos automóveis.

ADOLESCENTE PERVERSA 1971

Quando rodou "Deep End", que teve o extraordinário título português de "Adolescente Perversa", Skolimowski já estava baseado em Londres. Com algumas das principais actrizes do cinema britânico da época (Jane Asher, ex-namorada de Paul McCartney, ou Diana Dors), "Deep End" tem fortes pontos de contacto com "Quatro Noites com Anna": a história de um adolescente obcecado por uma sua colega de trabalho, um pouco mais velha, num estabelecimento de banhos públicos londrino. A obsessão termina em dissolução, e a sexualidade em fonte de tormenta e instrumento punitivo.