Tiago Guillul, João Coração, Samuel Úria inventam um país

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Está qualquer coisa a acontecer aqui e ainda não sabemos bem o que é.

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Está qualquer coisa a acontecer aqui e ainda não sabemos bem o que é.

Podíamos dizer: de repente, graças aos discos de Tiago Guillul, "IV", e dos Pontos Negros, "Magnífico Material Inútil", a pop em português voltou a valer a pena. Tiago, além de fazer o seu álbum, ainda produziu os Pontos - que curiosidade engraçada, este é um bom momento, que golpe de sorte, amanhã isto acabou, foi bom, foi bom...

Mas não é isso.

Tentemos de novo: de repente, graças a Tiago Guillul e aos Pontos Negros voltámos a gostar de ouvir a nossa língua. De repente cantar em português deixou de ser um assunto. E de repente o português parece ser a língua natural de uma canção pop. Isto graças a Tiago Guillul e aos Pontos Negros.

Mas, esperem, também não é nada disto.

Os factos dizem: depois de Guillul e dos Pontos vieram discos de bfachada ("Viola Braguesa"), agora o EP de Samuel Úria, "Em Bruto", e a grande estreia de João Coração ("Número 1. Sessão de Cezimbra"). Todos na FlorCaveira, a editora de Guillul, todos em português. A estes podemos acrescentar "Uma Vida a Direito", discos de estreia dos Feromona que, apesar de editado na Catadupa, pode ser incluído no movimento.

E ainda falta a estreia de Os Golpes e de Os Quais, bandas da AmorFúria, editora/agenciadora que tem organizado os concertos desta gente toda - concertos, ainda que em salas pequenas, sempre cheios, com miúdos e semi-graúdos (entre os 18 e os trinta e poucos) a cantarem de cor as letras e em estado de euforia. E em cada um destes discos - ou nas canções que lhes conhecemos dos concertos ou do Myspace - torna-se óbvio um dado fundamental. Estes tipos não escrevem canções em português como é normal. São cultos e têm com a língua uma relação lúdica - escrevem de forma "esperta" mas não explicitamente literária, apesar de isso apenas ser possível em gente lida.

A hipótese é esta: estamos a viver um daqueles momentos a que se retorna vinte ou trinta anos depois. Arranjando as palavras de outra forma: já não havia pop tão descaradamente à vontade em ser portuguesa desde os idos de G.N.R., já não havia pop tão descaradamente centrada na nossa bandeira desde os Heróis do Mar, desde Variações que não havia pop tão orgulhosa de ter um pé em Nova Iorque e outro no subúrbio.

Quem é esta gente que entra de rompante pela nossa música adentro (mesmo que alguns já componham há muito), e o que é que os une? E o que é que há no português deles que os autonomiza das anteriores bandas nacionais e os torna especiais?

Qualquer resposta passa pela FlorCaveira e pela AmorFúria, as duas estruturas fundamentais, geridas por Tiago Guillul e Manuel Fúria (membro d'Os Golpes). E passa pelos trovadores de serviço, que esta semana lançam os seus discos, Samuel Fúria e João Coração.

O encontro

2007 foi um ano bom e um ano mau para Manuel Fúria. Por um lado teve uma depressão, que o levou a deixar o curso de Cinema em que se tinha inscrito após abandonar Filosofia ao fim de dois anos. Por outro "foi aí que a cena musical começou a bombar". Há um ano, Manuel ainda não era Fúria (nome artístico), mas sim Barbosa de Matos. E um dia encontrou na net Os Lacraus.

"Estava a andar pelo Myspace e ouvi Os Lacraus. Pensei: ''Como é que isto não é considerado a melhor banda de agora?'' Fiquei fascinado". Manuel era doido pelos Lacraus.

Os Lacraus, entretanto, tinham encerrado actividade. Eram a banda de Tiago Cavaco, conhecido por Tiago Guillul. A história de Cavaco é hoje conhecida pelo lado "exótico" de ser padre baptista e punk-rocker. Cavaco faz música há meia vida. Mas só a 17 de Junho é que um disco seu, "IV", chegou às lojas. Foi o culminar de um processo de legitimação da "persona" de Cavaco que passou - em parte - pela blogosfera: o seu blogue (vozdodeserto.blogspot.com) faz parte da primeira leva de diários online, e cedo se destacou pelo seu exímio talento em escrever textos de quatro linhas que facilmente oscilavam entre o humor corrosivo, a inquirição metafísica (para não limitar o seu universo à religião "strictu sensu") e a pura mundanidade.

"IV" é, como o nome indica, o quarto disco a solo de Guillul, senhor de uma produção habitualmente profícua. Os anteriores tinham passado despercebidos aos melómanos (quanto mais à população em geral), mas desta vez houve uma diferença: Tiago foi aconselhado.

É aí que entra João Coração: "Quando o Tiago fez o ''IV'', queria fazer logo a seguir o ''V'', mas convenci-o a não gravar mais nada e mandar o disco para as lojas". Com o disco nas lojas a imprensa foi atrás dele e seguiu deliciada a história do pregador punk. Como Guillul produzia na altura os Pontos Negros (banda que descobrira), estes beneficiaram do hype e o momento instalou-se.

Mas como chegou João Coração a Guillul e porque raio só então é que a imprensa apanhou Guillul?

Há que voltar atrás. Fúria descobrira os Lacraus. E Cavaco foi parar à página do Myspace dos 400 Golpes, a banda que Fúria tinha entretanto montado.

Fúria: "O grande passo deu-se quando o Tiago, assinando pelos Lacraus, escreveu na nossa página ''Me gusta los 400 Golpes''". Fúria sentiu-se legitimado, apoiado. Andava a fazer bandas desde os 14 anos, sempre a debater-se com um problema: "Nessa altura já queria cantar só em português", o que não era bem recebido pelos restantes músicos. Agora tinha companhia.

"Marquei um almoço com o Tiago e com o Bernardo Barata [dos Feromona]". Manuel Fúria ia convidá-los para um projecto seu, o Portugal Mix, "uma festa no Musicbox, que nunca chegou a realizar-se, centrada na questão da língua portuguesa na pop - queria juntar por um lado o Vítor Rua, o Miguel Esteves Cardoso, o João Peste, por outro queria pegar na FlorCaveira, na Catadupa [editora dos Feromona] e na AmorFúria". A AmorFúria, note-se, ainda não existia. Não foi a única vez que Manuel pôs o carro à frente dos bois: quando convidou os Smix Smox Smux, trio de Braga, para as fileiras da editora, esta ainda não tinha oficialmente nascido.

Manuel é um tipo de projectos. Chegou ao almoço com a proposta de fazer "um disco e um livro" a partir do Portugal Mix. O projecto nunca chegou a ir para a frente, mas ficou a amizade. "Quando começámos a falar sobre Deus e fé, foi aí que se deu o clique. Percebemos que havia algo mais forte que a música a unir-nos".

É que Fúria estudou no Colégio de Jesuítas de Santo Tirso. É daí que a malta d'Os Golpes, a sua banda (segunda encarnação dos 400 Golpes), se conhece.

João Coração tinha dado com Manuel Fúria no curso de cinema. Um dia respondeu ao apelo do amigo: "O Manuel teve a ideia de fazer a AmorFúria. Convocou uma reunião e disse: ''Vamos fazer uma companhia de discos e filmes''. Mais tarde é que se tornou agência - e entretanto temos estado a fazer os nossos próprios vídeos".

O cinema uniu Coração e Fúria, o Myspace juntou o Amor à Caveira. E Coração trouxe João Santos, que durante anos trabalhara na indie Ananana e agora tem a sua distribuidora, a Mbari. Santos terá percebido o potencial que havia por trás não só da música como das ideias: e mais que pôr os discos nas lojas, pô-los na imprensa. E a imprensa gosta de uma boa história.

A ideologia

Rapidamente a AmorFúria tornou-se a plataforma de organização de concertos da malta da FlorCaveira. A rir-se, Fúria diz que Guillul e amigos eram "gajos escondidos na toca e ressabiados por não serem reconhecidos".

Há uma diferença fundamental entre os membros originais das duas editoras: o pessoal da FlorCaveira é gente dos subúrbios, os rapazes da AmorFúria são meninos burgueses.

Enquanto Manuel Fúria passou os últimos anos a escrever manifestos sobre "o sonho" de "devolver ao Mundo a grandeza de Portugal", Tiago, Samuel Úria e restantes moços passaram uma vida a dar concertos - e Tiago vem do hardcore. Repesquemos a entrevista acima citada, em que Tiago mencionava um momento fundamental do seu crescimento: "O dia em que o Rodrigo [vocalista dos X-Acto, banda hardcore dos anos 90] leva uma crista espetada para o liceu, tinha o liceu todo a olhar para ele num misto de escárnio e adoração. Ele era um tipo cool do polivalente. Tornámo-nos amigos, até lhe dei umas lições de baixo antes de ele estar nos X-Acto, ensinei-lhe músicas dos Resistência".

A ideia de "tipo cool do polivalente" com crista, o fascínio de Cavaco por esta simples mistura em que os Resistência encontram o hardcore demonstra que esta é uma geração que já cresce dentro da cultura popular - capaz de flirtar com as mais variadas referências e a ter de conviver com a diferença à força.

Úria, tal como Cavaco, é Baptista. E tal como Fúria, vem de fora da cidade (Tondela). Não se cresce Baptista sem que isso tenha um preço, em particular num país que ainda não sabe integrar a diferença, como diz Cavaco.

E isso é mais um elemento que as gentes destas duas editoras conhece bem: nenhum cresceu sossegadinho num único sítio e num único estrato social. Fúria e Coração podem vir da classe média alta, mas sabem o que é não estar integrado: Coração andou a saltar de terra em terra e de curso em curso, Fúria falou ao Ípsilon de ser filho de lisboetas que foi cedo para Santo Tirso e de lá sentir-se lisboeta e cá sentir-se nortenho.

Não é preciso tirar um curso de psicanálise por correspondência para perceber que isso está na raiz da vontade de transformação que todos têm - e que se vê na facilidade com que criam ícones, se tornam imagens. Digam isto a Cavaco e a resposta é simples: "Mas a pop não é isso? Se um tipo não pode fazer isso na pop, onde é que pode?"

(Pormenor: seja porque razão for, a malta da FlorCaveira sempre teve a mania de fazer concertos em conjunto, o que agora aumenta com a presença dos moços da AmorFúria. No entanto, toda essa festa em palco, por vezes, soa a anos 60. Não por acaso Manuel Fúria diz que o ícone comum a todos é Bob Dylan.)

Há outra coisa que os une: todos são literatos - a ideia do português como sendo natural é muito bonita, mas aquelas letras são trabalhadas até ao limite da simplicidade. Em casa de Fúria há livros por todo o lado, cada vez que encontrámos João Coração ele trazia um livro na mão, acerca de Cavaco nem é preciso dizer mais nada e quanto a Úria basta citar "Desliga a TV", do EP "Samuel Úria & As Velhas Glórias": "Saramago é bom mas não traz a salvação/ quem tem medo do Lobo Antunes devia ter temor a Deus".

Durante anos os Baptistas tinham cantado para si e para os amigos de liceu, enquanto casavam, tinham filhos e trabalhavam. Durante anos os burgueses tinham desistido de cursos e imaginado uma vida criativa que não se materializava. Até que a net os uniu. O que é engraçado é que no momento em que a net globaliza o mundo, eles, em vez de tentarem à força falar de assuntos universais, olham para o seu pequeno mundo, olham-no em português e são legitimados por isso.

Úria: "A internet traz alguma legitimação. Em vez de círculos conspiratórios de duas ou três pessoas que se reúnem no café, há pessoas a puxar umas pelas outras em vários sítios do país". E acaba: "andamos ali a apoiar-nos uns aos outros e a exortar-nos uns aos outros".

A AmorFúria começa inspirada na FlorCaveira e ajuda os homens da editora de Cavaco a arranjar concertos com regularidade, mas o mais importante é essa questão de exortação mútua: de repente esta gente sente-se legitimada.

E essa legitimação já extravasou: Úria ainda não tem um CD nas lojas (mesmo já tendo gravado EPs) mas já um pequeno furor à volta dele. Desde o concerto dos Pontos Negros no MusicBox, que Os Golpes (abriram essa noite) ficaram como referência de uma data de miúdos (e graúdos). O fenómeno fez chamar a atenção para bandas amigas mas que não pertencem ao catálogo das duas editoras, como os Feromona. E ontem, quinta-feira, b fachada foi ao Portugal no Coração - o que significa que este pequeno fenómeno não é pensado para ser uma brincadeira de culto.

Se eles não tiverem essa ambição, têm pelo menos o sonho. Graças a eles voltou a valer a pena ouvir pop em português. Resta saber se entretanto o típico moço português de vinte anos perdeu a vergonha à sua língua.