Ensaio sobre a estupidez
A diferença entre um e outro - para lá da recepção crítica bastante negativa da imprensa americana, com Richard Corliss da "Time" a dizer-se perplexo - é essencialmente no tom: da elegia desencantada e da nostalgia de uma inocência de outros tempos de "Este País Não É para Velhos" passou-se à constatação do presente em tom de sorriso amarelo de "Destruir Depois de Ler". Mas a secura quase cruel do cinema dos Coen, o seu olhar quase clínico sobre as coisas, mantém-se intacta. Claro que os críticos americanos não gostaram do tom de sátira absurdista e selvagem com que os irmãos dissecam esse valor universal que é a estupidez. Porque "Destruir Depois de Ler" é um filme sobre a estupidez, sobre o modo como ela parece estar enraizada numa certa sociedade americana demasiado ocupada com os "sinais exteriores de riqueza" para ligar ao que interessa. E é um filme quase derrotista, na sua sugestão de que o altruísmo e a inocência são valores condenados ao sacrifício, sem lugar neste "novo mundo" onde se persegue tudo aquilo que não interessa.
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A diferença entre um e outro - para lá da recepção crítica bastante negativa da imprensa americana, com Richard Corliss da "Time" a dizer-se perplexo - é essencialmente no tom: da elegia desencantada e da nostalgia de uma inocência de outros tempos de "Este País Não É para Velhos" passou-se à constatação do presente em tom de sorriso amarelo de "Destruir Depois de Ler". Mas a secura quase cruel do cinema dos Coen, o seu olhar quase clínico sobre as coisas, mantém-se intacta. Claro que os críticos americanos não gostaram do tom de sátira absurdista e selvagem com que os irmãos dissecam esse valor universal que é a estupidez. Porque "Destruir Depois de Ler" é um filme sobre a estupidez, sobre o modo como ela parece estar enraizada numa certa sociedade americana demasiado ocupada com os "sinais exteriores de riqueza" para ligar ao que interessa. E é um filme quase derrotista, na sua sugestão de que o altruísmo e a inocência são valores condenados ao sacrifício, sem lugar neste "novo mundo" onde se persegue tudo aquilo que não interessa.
Há um analista da CIA ( John Malkovich) que se prefere despedir a ser atirado para a prateleira, e que decide escrever as suas memórias reveladoras para fazer dinheiro, enquanto a esposa pediatra (Tilda Swinton) começa a pensar num divórcio para ficar com o dinheiro do casal e eventualmente amancebar-se com o amante, um "marshall" das Finanças (George Clooney) que é casado com uma autora de livros infantis mas dorme por fora com toda a saia que lhe apareça à frente. Uma cópia das memórias reveladoras cai por puro acaso nas mãos de um instrutor de ginásio burro como um calhau (Brad Pitt) e da sua sub-gerente (Frances McDormand) desesperada pelo dinheiro que lhe permita fazer a plástica do seu sonho, uma conversa telefónica origina um malentendido, o analista acha que estão a querer chantageá-lo e é uma questão de tempo até a comédia de enganos revelar a falta de comunicação, o egoísmo e a irresponsabilidade desta gente que quer tão desesperadamente perseguir os seus sonhos que não é capaz de parar para pensar no que está a fazer.
Não estamos assim tão longe de "Fargo" como isso - mas onde aquele era um filme onde a comédia negra coloria a sua estrutura policia e onde havia pelo meio gente sensata, "Destruir Depois de Ler" assume-se mais classicamente como uma comédia onde ninguém se salva, e os Coen não têm, já o sabemos, jeito por aí além para a comédia (apesar do semi-sucesso de "Crueldade Intolerável"). O seu cinema é demasiado clínico e austero para que a graça seja genuína (embora, a espaços, o seja, como na personagem de calhau com olhos que Brad Pitt interpreta com infinita elegância) ou não termine num esgar de cinismo - e, a esse respeito, o espantoso final, tão anticlimáctico como o era o de "Este País Não É para Velhos" mas muito mais revelador da estupidez como constante universal e perfeitamente alinhado com a entomologia intrigada do grosso do filme, trai impecavelmente essa atitude de distanciamento quase superior de quem não se quer misturar.
É, se calhar, por isso muito mais prático olhar para "Destruir Depois de Ler", mais do que uma comédia, como uma sátira fria e desencantada a uma América cada vez mais virada para dentro de si mesma e cada vez mais crédula, acreditando em fachadas e superfícies que nada revelam da verdade mas se limitam a serem projecções de desejos. Ou como um filme infinitamente triste sobre gente solitária e confusa que se procura a si mesma em todos os lugares errados. Ou como uma indirecta a uma administração de saída que ajudou em demasia a tudo o que ficou acima. Ou como um olhar surreal sobre um mundo que já não é como era dantes. O que o torna, claro, num filme nitidamente dos seus autores e que não destoa em nada da obra anterior. Que não é um clássico que vá ficar como um dos seus melhores filmes, mas que é melhor do que a maior parte da crítica dá a entender.