Uma terra sem bons nem maus
No filme "Gomorra", de Matteo Garrone, chamam-se Marco e Ciro, imaginavam-se personagens de "Scarface", de Brian de Palma, e morrem juntos. No livro "Gomorra", de Roberto Saviano (editado pela Caderno), a cena é ligeiramente diferente. Chamam-se Giuseppe e Romeo, imaginam-se personagens de qualquer bom filme da mafia, e Romeo vê o amigo morrer primeiro.
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No filme "Gomorra", de Matteo Garrone, chamam-se Marco e Ciro, imaginavam-se personagens de "Scarface", de Brian de Palma, e morrem juntos. No livro "Gomorra", de Roberto Saviano (editado pela Caderno), a cena é ligeiramente diferente. Chamam-se Giuseppe e Romeo, imaginam-se personagens de qualquer bom filme da mafia, e Romeo vê o amigo morrer primeiro.
"Quando Romeo viu Giuseppe no chão", escreve Saviano, "estou certo - com uma certeza que nunca poderá ter qualquer tipo de confirmação - que compreendeu a exacta diferença entre o cinema e a realidade, entre uma construção cenográfica e o cheiro do ar, entre a própria vida e uma encenação. Chegou a sua vez. Dispararam-lhe para a garganta e acabaram-no com um tiro na cabeça. Somando as suas idades pouco passavam dos trinta anos."
"Gomorra" é um filme - vencedor do Grande Prémio do Júri no último Festival de Cannes - sobre a mafia napolitana, a camorra. Mas é também um filme (tal como o livro era) sobre a força de um imaginário: o da mafia no cinema. Aqueles que deveriam ser os modelos (os mafiosos) acabam por perseguir a imagem, de um certo "glamour", que o cinema criou deles próprios. É, por isso, curioso que Matteo Garrone explique assim, numa conversa telefónica com o Ípsilon a partir de Roma, o facto de a população de Scampia, um subúrbio de Nápoles, ter concordado em participar no seu filme: "Há uma coisa que é fundamental para compreender porque é que consegui filmar ali: é que eles amam o cinema, formam o seu imaginário no cinema, e a possibilidade de participar num projecto cinematográfico é para eles uma abertura". As filmagens decorreram sem problemas. "Claro que vínhamos com um livro que era extremamente delicado, pelo qual o escritor tinha sido ameaçado de morte, mas o cinema é mais forte do que qualquer outra coisa."
Foi assim, graças ao cinema, que Garrone, realizador italiano nascido e criado em Roma, pôde entrar num mundo que não conhecia antes de ler o livro de Saviano. "A imagem que tinha da mafia estava também ligada a esse imaginário cinematográfico. Não imaginava que existisse em Nápoles aquela realidade, pessoas que vivem numa dimensão de guerra quotidiana, a poucos quilómetros de minha casa, em 2008, em Itália." Leu o livro - que foi um acontecimento mediático, primeiro em Itália e depois no resto do mundo -, logo a seguir à publicação e viu imediatamente que havia ali "grandes potencialidades". O trunfo de Saviano, na sua opinião, é ter conseguido "contar o mundo da camorra a partir de dentro". Garrone quis fazer o mesmo, mas em cinema.
Escolheu cinco entre as muitas histórias do livro - a de Totó, que aos 13 anos não consegue esperar mais para se tornar, como os amigos mais velhos, um camorrista, e para conseguir isso está disposto a tudo; a de Marco e Ciro, fascinados por filmes de Brian de Palma a ponto de não perceberem que na vida real as balas matam mesmo; a de Don Ciro, um "submarino", ou seja, uma figura que assegura os pagamentos às famílias dos mafiosos presos mas que se vê envolvido nas guerras de clãs; Pasquale, um costureiro de mãos de ouro que já trabalhava para a mafia italiana e acaba por trabalhar também para a chinesa; Roberto, um jovem recém-licenciado e com escrúpulos que aceita trabalhar para um empresário sem escrúpulos envolvido em negócios de lixo tóxico.
O livro de Saviano já é completamente cinematográfico. Quando o leu, Garrone viu exactamente o que queria filmar. E percebeu que teria que o fazer num bairro verdadeiro, com gente verdadeira. "Quis dar ao espectador a sensação de estar dentro, de estar naqueles sítios, para lhe passar um pouco do impacto emotivo que senti ali." E, filmando em Scampia, entrou no tal universo paralelo que os telejornais nunca lhe tinham mostrado, pelo menos da forma como Saviano o descrevia - "estou habituado a ver as notícias sobre os assassinatos, e depois não se mostra mais nada".
Começou a perceber que não é possível olhar para a camorra como um mundo simples, a preto e branco, com bons e maus. "Quando se entra naquela realidade apercebemo-nos de que é um sistema, uma engrenagem que condiciona a vida de tantas pessoas. E que eles próprios muitas vezes não têm consciência disso". Aliás, continua, "o que mais chama a atenção é essa inconsciência de muitas pessoas em relação àquela condição."
Que imagem é que a população de Scampia pensou que o filme iria dar dela é algo a que Garrone não sabe responder. "Não sei que imagem têm deles próprios, nem sequer o que pensaram do filme, ou qual foi a reacção que tiveram ao ver-se representados." O que sabe é que eles foram "honestos e sinceros, muito mais do que teriam sido outras organizações legais". "Sempre que se tenta fazer um filme sobre a polícia ou sobre o Vaticano, por exemplo, há três mil impedimentos à tentativa de contar a verdade.
Estas pessoas de Scampia tiveram uma honestidade profunda: contaram as suas vidas, abriram-se". Garrone quis fazer um filme "não contra a camorra, mas sobre a camorra". "O que me interessava não era mostrar o camorrista como uma figura negativa e má, interessava-me mostrar como é fácil cair dentro de certos mecanismos, como é fácil tornarmo-nos camorristas. Tudo ali é uma grande zona cinzenta, onde o bem e o mal se confundem". E a população de Scampia não teve medo da reacção dos boss quando decidiu participar na adaptação ao cinema do livro de Saviano (quando o próprio Saviano foi ameaçado de morte e vive hoje rodeado por enormes medidas de segurança)? Uma nota de impaciência passa pela voz de Garrone: "Está outra vez a insistir na divisão entre bons e maus... É tudo muito mais confuso. É um mundo em que todos estão envolvidos".
É um mundo onde o exterior quase não existe (por isso é que a chegada de uma equipa de filmagens durante dois meses representa uma entrada de ar), mas no qual, ao contrário do que se possa pensar, "a alternativa existe, a escolha existe", garante o realizador.
Vendo "Gomorra" temos dificuldade em acreditar nisso. É verdade que há um momento em que Totó, o rapaz de 13 anos, faz uma escolha. É uma escolha difícil, mas é a única que lhe permite pertencer à camorra. E será que tinha outra? "Claro que crescendo naquela realidade, vivendo naquele mundo que é uma espécie de sistema fechado, é muito mais fácil cair dentro de certos mecanismos e cometer erros. Se eu tivesse crescido naquela realidade teria ficado mais vulnerável a isso. Mas todos têm escolhas."
Várias personagens do filme cruzam-se no cenário do bairro de habitação social de Scampia, onde corredores exteriores conduzem a portas de casas, num percurso labiríntico que Don Ciro percorre distribuindo dinheiro. É uma arquitectura que reforça esse lado claustrofóbico, de um mundo virado para dentro, um sistema fechado. Mas Garrone defende que "o problema não é o edifício", até porque encontrou um igual, feito pelo mesmo arquitecto italiano, perto de Cannes. "É a mesma estrutura arquitectónica e é um dos lugares da elite do Sul de França. Se se coloca esta estrutura nas mãos de uma série de famílias, se se deixa que ela entre em degradação, sem nenhuma assistência política ou social, claro que a estrutura corrompe-se. Mas não é culpa da estrutura nem do arquitecto; é uma questão de responsabilidade política."
Por trás de um fenómeno como a camorra está o desemprego, estão os problemas sociais. O que os políticos precisam de fazer, diz o realizador, é "compreender e viver a partir de dentro essas problemáticas". Se não o fizerem, "a camorra vencerá sempre, porque a camorra nasce e vive dentro dos bairros". Além disso, repete, "enquanto não se compreender que não há bons e maus não se perceberá nunca nada". Tudo isto é demasiado parecido com um filme da mafia. Mas não é. É a vida real.