Coisas do bom demónio
Se soubermos que o responsável de tal estranheza é Guillermo del Toro, o cineasta mexicano de "OLabirinto do Fauno" (2006), em cujo cinema barroco e surreal o conto de fadas parece ser uma constante, acoisa já não parece tão estranha. Não invalida que, na prática, ver uma fita de super-heróis americana,de produção sumptuosa e ambições globais, a começar com a absoluta negação da sua própria lógica,substituindo os efeitos visuais digitais espectaculares por animação tradicional (e pouco espectacular) de volumes, é qualquer coisa deinabitual.
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Se soubermos que o responsável de tal estranheza é Guillermo del Toro, o cineasta mexicano de "OLabirinto do Fauno" (2006), em cujo cinema barroco e surreal o conto de fadas parece ser uma constante, acoisa já não parece tão estranha. Não invalida que, na prática, ver uma fita de super-heróis americana,de produção sumptuosa e ambições globais, a começar com a absoluta negação da sua própria lógica,substituindo os efeitos visuais digitais espectaculares por animação tradicional (e pouco espectacular) de volumes, é qualquer coisa deinabitual.
Mas também é verdade que "Hellboy" é um objecto ex-cêntrico (isto é: longe do centro) face à habitual produção de super-heróis americana. A primeira encarnação cinematográfica da personagem debanda-desenhada criada por Mike Mignola, um demónio dos infernos que, adoptado pelos humanos, se dedica a protegê-los das forças do oculto, data de 2004, já sob a direcção de Del Toro e os traços de Ron Perlman, e esteve muito longe de ser um recordista de bilheteira. Foi o culto entretanto votado aoprimeiro filme, em DVD e no círculo de admiradores da BD, que levou a Universal a arriscar dar uma sequela às aventuras de um demónio que fuma charutos cubanos, adora gatos, chocolates e televisão, tem muito mau feitio e só quer ser aceite e levar uma vida tranquila. No género: eu não quero sarilhos, eles é que me querem a mim. O Hellboy de Del Toro e Perlman é uma espécie de detective privado moderno, farto da sujidade em que o obrigam a remexer, personagem saída da série B clássica de género. Só que em vermelho, cornudo (mesmo que os cornos estejam limados) e mau como as cobras.
É, aliás, aí que este segundo tomo das aventuras de Hellboy se ganha, à imagem do primeiro filme: numa inscrição deliberada nas regras da série B, na leveza com que Del Toro insere numa história de "pulp fiction" convencional elementos caros ao seu universo, sem por isso despersonalizar Hellboy nem lhe emprestar uma gravidade que seria completamente excessiva no âmbito de uma série B.Sim, fala-se aqui do direito à diferença, da ténue divisão entre o Bem e o Mal, do sacrifício por amor(tudo temas recorrentes do universo de Del Toro, tal como a obsessão por mecanismos de relojoaria que já vem de "Cronos" e pelos contos de fadas quedesabrochou nos seus filmes espanhóis, "Nas Costas do Diabo" e "O Labirinto do Fauno"), mas sem nunca carregar no traço grosso que tornaria tudo desequilibrado e indigesto.
Primordialmente, "Hellboy II" é uma fantasia de acção e é esse caderno de encargos que Del Torocumpre com primor e humor, encenando o confronto entre Hellboy e o pérfido príncipe Nuada pelo controle do mítico e indestrutível Exército Douradocomo uma aventura popular no limite do realismo, que mantém intactas as suas raízes de BD e não enjeita um pezinho matreiro a fugir para o chinelo (ai, aquele dueto ao som de Barry Manilow...). É precisamente isso que "Hellboy II: O Exército Dourado" é: cinema popular inteligente, que sabe serdescontraído e despretensioso e não quer mais do que entreter durante duas horas, sem por isso perder otoque de personalidade que esperávamos de um cineasta tão idiossincrático como Guillermo delToro. Não se espere outro "Labirinto do Fauno" - "Hellboy II" joga assumidamente noutros campeonatos - mas que não se caia no erro de lhe chamar "filme menor".