As tampinhas dão alguidares, a iniciativa de as juntar dá alegrias

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A inscrição de Flávio no “Projecto T” da Amarsul partiu de uma turma da sua escola DR

Foi assim com Flávio. Tem 22 anos e sofre de paralisia cerebral. Em Janeiro recebeu uma cadeira adaptada para poder jogar basquetebol, desporto que pratica há 3 anos.

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Foi assim com Flávio. Tem 22 anos e sofre de paralisia cerebral. Em Janeiro recebeu uma cadeira adaptada para poder jogar basquetebol, desporto que pratica há 3 anos.

A inscrição de Flávio no “Projecto T” da Amarsul, empresa de Valorização e Tratamento de Resíduos Sólidos, que troca tampas de plástico por material ortopédico partiu de uma turma da sua escola. “O tema de Área de Projecto era a solidariedade e lembrámo-nos do projecto das tampinhas e do nosso aluno Flávio” explica a professora de educação física, Madalena Sereno.

Colocaram “ecotampas” em vários pontos da escola e gerou-se uma verdadeira onda de solidariedade. Todas as semanas, as tampas eram recolhidas e entregues na junta de freguesia de S. André que se encarregava de as entregar na Amarsul. Em pouco mais de um ano, alunos, professores e funcionários, juntaram a tonelada necessária.

O pedido ficou numa espécie de lista de espera e à medida que cada tonelada ia sendo alcançada mais um nome era riscado da lista. Passado um ano e meio do início do projecto, chegou a vez de Flávio. Entregaram-lhe a cadeira, “a primeira adaptada à prática desportiva no país”, lembra António Barreto, director desportivo do clube onde Flávio joga. “É das mais baratinhas. Custou 1690 euros”, diz. Mas cumpre a sua função.

Atrofia Muscular

Desde cedo que Flávio precisa de apoio para andar. Com apenas dois anos, ao invés dos passos periclitantes e das quedas engraçadas, tinha um andar fora do comum. Só assentava as pontas dos pés, e caía mais do que o razoável, como se não tivesse força nas pernas. “Andava sempre no chão”, conta a mãe, Alda Leal, ao recordar a altura em que se apercebeu que algo de estranho se passava com o seu bebé. Depois de alguns exames, o diagnóstico estava encontrado: “Os tendões não cresciam, não acompanhavam o desenvolvimento do corpo, tinha uma atrofia muscular que lhe condicionava a mobilidade”.


Apesar das dificuldades, continuou a fazer o mesmo que as outras crianças. “O meu filho andou, correu atrás de uma bola, brincou no parque”, relembra. Hoje, olhando para Flávio, essa descrição é difícil de imaginar. Com a insistência da mãe, continuou a estudar e frequenta, há seis anos, um curso tecnológico de informática na Escola Secundária de Santo André, no Barreiro – cidade onde vive e treina.

Flávio chegou à equipa de basquetebol do Santo Antoniense em cadeira de rodas há três anos. “Foram os ‘stôres’ de educação física que me disseram para ir”, recorda. Até então, a família Leal desconhecia que esta modalidade era praticada num clube tão próximo.

Para a mãe de Flávio, o basquetebol é uma forma de ele sair, conviver e de se integrar. “Os exemplos dos outros dão-lhe força”, acrescenta. Excluindo as viagens, na carrinha da Câmara, que o levam até à escola ou aos treinos, está quase sempre em casa. “Às vezes vou dar uma volta mas muito raramente. Os meus amigos são de longe”, conta Flávio.

Nos postes de electricidade encontra o balancé que precisa para não se deixar ficar para trás: a mão direita apoiada no pilar de betão dá balanço e lá vai ele. As rodas que só giravam com a força dos braços, vão agora muito mais depressa. “Não preferes ir pelo passeio?”, pergunta-lhe o irmão Márcio de 19 anos. Flávio nem responde e, apesar da dificuldade em mover as duas rodas da cadeira no piso relvado, continua ao lado do grupo como se estivesse farto de ser diferente.

“Estica os braços, ‘chavalo’”

Todas as terças e sextas-feiras à noite, Flávio treina com os outros onze membros da equipa (com idades entre os 17 e os 63 anos). É um atleta “calão”, critica António Barreto. Logo no aquecimento percebe-se que Flávio não está ali para bater recordes. As voltas que dá ao campo são mais lentas que as dos colegas. No momento de encestar, coloca a bola no colo. Um, dois, três impulsos (mais um do que as regras permitem) com a cadeira. Pega na bola e com pouca força lança ao cesto. A bola cai para trás. “Estica os braços ‘chavalo’. Flávio, estica os braços”, grita Barreto. E explica a exigência: “Esta cadeira está adaptada à sua condição, mas tem que ser trabalhada”.

Quando começou a jogar, não tinha a cadeira de rodas adaptada à prática desportiva. Por isso, usava uma do clube. Desde o início deste ano, a cadeira com que treina e joga é feita à sua medida. Para além das duas rodas principais, mais inclinadas do que o normal para permitir uma melhor aderência ao piso, tem ainda mais três pequenas: duas à frente e outra atrás; na cintura e nos pés está seguro por um cinto para que não caia.

Da ideia à acção

Não se sabe ao certo quantos projectos deste tipo existem no país. Há escolas e instituições que fomentam a angariação de tampas para casos particulares. Muitas empresas locais e regionais de recolha de resíduos fazem o mesmo.

Mas sabe-se como tudo começou. Em 2003, a enfermeira Guadalupe Jacinto pôs em andamento uma ideia: as tampas de plástico podiam ser trocadas por material ortopédico para a Liga dos Amigos do Hospital Garcia de Orta, em Almada. A Amarsul dinamizou-a, criando nos últimos anos o “Projecto T”.

Desde então, só a Amarsul já recebeu mais de 211 mil toneladas de tampas, que depois são enviadas para empresas de reciclagem como a Micronipol. Todos os anos, a Micronipol recebe 300 toneladas de tampas que são derretidas e transformadas em baldes ou alguidares.

Apesar de muitos não acreditarem na recolha das “tampinhas”, como carinhosamente são chamadas, estas têm uma finalidade real. Vânia Pomares, 22 anos, estudante de Medicina Dentária, nunca levou muito a sério “essa história das tampas”. “No início ainda pensei que fosse para uma cadeira mas, passados dois anos, continuavam a recolher tampas. Comecei achar que era demais”. Na faculdade, mais por descargo de consciência do que qualquer outro motivo, coloca as tampas no recipiente próprio. “Em casa não ligo nenhuma a isso. Acho mesmo que não funciona”.

Muitos pensam como Vânia. Mas, de facto, não é bem assim. E este projecto parece que nunca mais acaba. Depois de alcançado determinado objectivo, passa-se de imediato para outro. A lista de espera pode levar anos a ter resposta. Flávio é um exemplo. Como o dele, existem centenas.