Neto de Humberto Delgado encontrou processo da morte do General degradado, numa "cave" do Tribunal da Boa Hora

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A biografia de Humberto Delgado, assinada pelo neto, será publicada em Maio DR

A revelação de Frederico Delgado Rosa à Agência Lusa de que aquele conjunto de volumes em papel, de grande valor histórico e que nunca foi microfilmado ou devidamente protegido, ocorre na véspera de o ministro da Justiça entregar ao Arquivo Distrital de Lisboa (Torre do Tombo) o processo relativo ao homicídio do general, ocorrido em 1963 na localidade espanhola de Villanueva del Fresno, junto à fronteira portuguesa.

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A revelação de Frederico Delgado Rosa à Agência Lusa de que aquele conjunto de volumes em papel, de grande valor histórico e que nunca foi microfilmado ou devidamente protegido, ocorre na véspera de o ministro da Justiça entregar ao Arquivo Distrital de Lisboa (Torre do Tombo) o processo relativo ao homicídio do general, ocorrido em 1963 na localidade espanhola de Villanueva del Fresno, junto à fronteira portuguesa.

A situação anómala que levou o processo, composto por 18 volumes, a ficar "todo empilhado no chão, em caixotes de cartão, sujeito a inundação e em péssimas condições de conservação" começou há alguns anos quando foram extintos os Tribunais Militares, que haviam julgado e condenado, à revelia, Casimiro Monteiro (elemento da PIDE envolvido no caso) e ilibado outros, incluindo o chefe da brigada da PIDE Rosa Casaco, numa decisão que o neto da vítima classifica de "farsa".

Frederico Delgado Rosa, que brevemente vai lançar o livro "Humberto Delgado - Biografia do General Sem Medo", resultado de um trabalho de sete anos de investigação, lembrou que, com a extinção dos tribunais militares, "grande parte dos processos" ali decorridos foram para o "Arquivo Histórico Militar".

Segundo o neto do general, a "dúvida" sobre o destino dado ao processo da morte de Humberto Delgado "ficou a pairar" até que, no âmbito da pesquisa que estava a realizar, precisou de "manusear" os autos no antigo Tribunal Militar de Santa Clara, Lisboa, e, após várias indagações, descobriu, em meados do ano passado, que este tinha ido, afinal, para o Tribunal Criminal da Boa Hora, Lisboa, mais concretamente para a 2/a Vara.

O neto do "general sem medo" recebeu "autorização" para consultar o processo, mas qual é o seu espanto este estava numa "cave, todo empilhado no chão, em caixotes de cartão, sujeito a inundação e em péssimas condições de conservação".

"As funcionárias judiciais nem sequer sabiam que tinham o processo", que inclui "cópia" do processo instruído em Espanha, relatou à Lusa Frederico Delgado Rosa, notando que nos autos está "documentação importantíssima", designadamente o dossier da "Operação Outono".

Além da documentação original, existem também "diversas fotografias" no processo relativo ao assassínio do general, após uma cilada em Badajoz (Espanha), montada em redor de uma pretensa reunião com militares portugueses, oposicionistas a Salazar.

Além de encontrar os autos na cave na Boa Hora, Frederico Delgado Rosa ficou ainda "espantado" ao saber que um dos volumes do processo estava num piso superior do tribunal, porque juridicamente este caso "estava ainda em aberto", porque "não se sabia se (o PIDE) Casimiro Monteiro estava vivo ou morto".

Isto, apesar de, conforme lembrou o neto do general, o inspector da PIDE Sachetti já há muito ter dito publicamente que Casimiro Monteiro tinha morrido na África do Sul.

"Vamos esperar até ao ano 3000 para saber se ele está vivo ou morto", criticou, questionando quais foram as diligências que a Justiça e o Estado português fizeram para descobrir se Casimiro Monteiro está vivo ou morto. "Aposto que não fizeram nenhuma (diligência)", antecipou.

Inconformado com o estado em que encontrou o processo na Boa Hora, havendo "folhas rasgadas, outras dobradas e em péssimas condições", o neto do general alertou a Fundação Humberto Delgado para a situação, tendo esta intervido, sem efeito, para que a documentação saísse da Boa Hora e fosse entregue ao Arquivo Histórico Militar.

Segundo Frederico Delgado Rosa, a resposta da Boa Hora à Fundação Humberto Delgado foi apenas a de que "o tribunal não antecipa decisões".

Uma ocasião propícia

Quanto à decisão anunciada de transferir agora o processo da Boa Hora para o Arquivo Distrital de Lisboa (Torre do Tombo) o neto de Humberto Delgado considera tratar-se de "um golpe de teatro", feito com muita rapidez, já que a denúncia da situação é feita no livro biográfico do general a ser lançado a 7 de Maio na Assembleia da República.

"O livro sai do prelo e é tomada esta decisão. Estou convencido que é uma decisão mais política do que judicial", em resposta às denúncias feitas no livro, disse, admitindo, contudo, à Lusa que "o mais importante é a salvaguarda e a conservação daquele património da história" de Portugal, num local mais seguro e adequado.

O neto do general insiste, porém, que o "lugar mais natural" para o processo ficar é no Arquivo Histórico Militar, tanto mais que foi o Tribunal Militar do Campo de Santa Clara, Lisboa, a julgar o caso.

Considerou ainda que a deliberação final aí tomada a 27 de Julho de 1981 foi uma "farsa", que serviu para ilibar Rosa Casaco, os seus superiores hierárquicos e "até o próprio Salazar", observando que "há pessoas ligadas ao sistema judicial português que sabem disso, mas não querem que se saiba".

"Isso explica porque é que o processo estava metido na cave (da Boa Hora)", argumentou.

Com esta transferência do material, disse esperar que o "processo seja conservado e reproduzido em vários tipos de suporte", pois "é um dever do Estado fazê-lo".

"É importante uma microfilmagem, pois dura séculos", propôs, advertindo que "há quem gostaria que o processo ardesse ou ficasse inundado".

A Lusa tentou obter um comentário do Ministério da Justiça à situação criada no Tribunal da Boa Hora, mas até ao momento não foi possível obter qualquer resposta.

O ministro da Justiça, Alberto Costa, fará quarta-feira a entrega do "processo comum colectivo nº. 469/04.4TCLSB" em cerimónia a realizar no Tribunal da Boa Hora, Lisboa, com a presença de Noronha do Nascimento, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, da família de Humberto Delgado e de Mário Soares, ex-advogado no processo, entre outras personalidades.

A morte do "general sem medo", que desafiou Salazar ao garantir que o demitiria da chefia do Governo caso fosse eleito nas presidenciais de 1958, ocorreu a 13 de Fevereiro de 1963. Humberto Delgado foi morto por agentes da PIDE, após ter sido atraído para uma cilada em Badajoz (Espanha), montada em redor de uma pretensa reunião com militares portugueses, oposicionistas a Salazar.

Segundo o Ministério da Justiça, o processo relativo ao assassínio de Humberto Delgado é composto por 18 volumes, 45 apensos e "vai ficar sob custódia do Arquivo Distrital de Lisboa a título de depósito, que se converterá em incorporação decorridos os prazos de conservação previstos em portaria de gestão de documentos dos tribunais".