Reportagem: Lusofonia com sotaque da Nova Europa
Em tempo de férias os corredores da Universidade Carlos IV estão quase vazios, com excepção para duas mulheres que os percorrem com um carrinho de bebé. Partilham a mesma língua, com a sonoridade, naturalmente, separada por um oceano. Param junto ao gabinete 118. “Pensei que você ia gostar”, anuncia a mais nova num português açucarado que deste lado do oceano se apelidou de doce. Estão à porta do Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões (CLP/IC) em Praga.
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Em tempo de férias os corredores da Universidade Carlos IV estão quase vazios, com excepção para duas mulheres que os percorrem com um carrinho de bebé. Partilham a mesma língua, com a sonoridade, naturalmente, separada por um oceano. Param junto ao gabinete 118. “Pensei que você ia gostar”, anuncia a mais nova num português açucarado que deste lado do oceano se apelidou de doce. Estão à porta do Centro de Língua Portuguesa do Instituto Camões (CLP/IC) em Praga.
Joaquim Ramos, 32 anos, que agora conversa com as duas mulheres junto ao CLP/IC, é leitor de português na República Checa e responsável pelo Centro. À portuguesa de meia-idade, também professora, parece pequeno e desprestigiante o espaço concedido pela universidade para o desenvolvimento das actividades de promoção da Língua e Cultura Portuguesas na República Checa. Joaquim discorda: “Dava-me imenso jeito ter um palácio enorme onde tivesse várias salas, com cinema, teatro. Mas não tenho, tenho esta.” Duas janelas altas, um computador com impressora, quatro mesas agrupadas em função do quadro branco onde em tempo de aulas se escrevem ditongos e explicam regras gramaticais; e livros, centenas de livros ao redor da sala. Exemplos da lusofonia de aquém e além-mar disponíveis para professores, estudantes e público interessado pela Língua Portuguesa.
Ali ao lado, nas ruas do centro, milhares de turistas descobrem a mágica cidade da Boémia Central. Muitos são portugueses que têm por guia estudantes e licenciados dos cursos de Língua e Cultura Portuguesas ministrados há 15 anos na República Checa. Nos últimos anos, a Europa central e de Leste conheceu um exponencial aumento de visitantes e os guias turísticos encontram aí uma forma de sustento.
“Isto é português? Uau!”Os leitores ao serviço do Instituto Camões (IC) são professores obrigatoriamente nativos de português que devem “possuir uma licenciatura, mestrado ou doutoramento, na área de Estudos Portugueses ou da Linguística Portuguesa. Se não for o caso, um currículo relevante na área do ensino do Português Língua Estrangeira é também considerado um requisito possível de se ter em conta”, explica Fernanda Barrocas do Núcleo de Apoio Pedagógico do IC. Para serem seleccionados, várias são as etapas: provas documentais e escritas, entrevista e testes psicotécnicos. Os leitores são colocados, por norma, por um período de quatro anos em cada país. Depois? “Novas experiências, novas metodologias”, resume Joaquim Ramos.
Para Zuzana Chudikova, actual professora de português na Eslováquia, é fácil traçar a evolução metodológica no ensino do português desde o seu primeiro contacto com a língua em 1992. Começou como aluna na Universidade de Komenius, em Bratislava: “a engrenagem inicial foi muito difícil porque tínhamos poucos materiais e estudávamos com um livro feito na República Checa. No 2º ano, o Instituto Camões arranjou uma leitora que vinha de Viena [a pouco mais de 60 Km de Bratislava] para dar aulas e eu lembro-me que ficámos muito entusiasmados por receber e ler uma página de um jornal português. Naquela altura não havia Internet”. Hoje já há. E este é um dos meios utilizados por Zuzana e os seus colegas do Instituto de Português, criado em 2001, para promover a língua portuguesa e culturas dos países lusófonos na Eslováquia. “A nossa página está em eslovaco, porque nunca foi do nosso interesse fazer páginas sobre Portugal em inglês ou português, existem imensas. E agora há muito mais interesse pela música e cultura portuguesa e não conseguimos satisfazer todos porque não temos tempo”, queixa-se Zuzana.
Cada vez mais, por todo o mundo, cresce o interesse pela cultura portuguesa. Até em locais onde, aparentemente, a brisa da sonoridade lusa não sopraria, esta acaba por marcar presença. Na Polónia, são 65 os alunos que estudam português, 320 na República Checa, 30 na Eslováquia, 70 na Hungria e 60 na Bulgária. Verdadeiro interesse ou falta de opção certo é que os números crescem de ano para ano.
Zuzana Chudikova, é um exemplo. “Quando comecei a estudar português não havia informação quase nenhuma sobre a língua e, na verdade, na minha turma optámos todos por português porque naquele ano não havia espanhol”, confessa. Contudo, a primeira impressão não podia ter sido melhor, “fiquei espantada porque ouvi aquele shshsh e pensei: ‘isto é português? Uau!’”. Mas nem sempre é assim. Para Rita Rolim, leitora do IC na Polónia no passado ano lectivo, os seus alunos aprendiam português com um ‘interesse desinteressado’. “Não têm motivações profissionais mas sim culturais. Demonstram interesse não só com a língua de Portugal mas também do Brasil e de outras culturas que falam o português”.
Os objectivos de Rita, 25 anos, cumprem-se neste interesse cultural dos seus alunos. Decidiu estudar português porque sempre quis mostrar a língua às pessoas, “mostrá-lo a todos, o que inclui o mundo inteiro”, conta. E foi o que aconteceu. Já esteve em Macau e na Polónia. O próximo destino é o Canadá.
Se para os polacos ter uma profissão relacionada com a Língua Portuguesa não constitui uma meta a longo prazo o mesmo não se passa com os búlgaros. Na Bulgária, o mercado de tradução é muito forte e a necessidade de traduzir obras de Paulo Coelho ou telenovelas brasileiras é uma constante. Por outro lado, o turismo começa também a ser conhecido, “é uma área em expansão, fazem-se pacotes turísticos com dois ou três dias em Sófia e depois quatro ou cinco na Riviera Búlgara, que começa a ser muito falada”, constata Francisco Nazareth, leitor do IC na Bulgária.
Aos 41 anos, Nazareth já foi leitor na Austrália e em Timor. Actualmente prepara-se para o segundo ano como leitor em Sófia e Veliko Târnovo, a cinco horas de comboio da capital. De calções, ténis, óculos escuros e mochila às costas confunde-se com qualquer turista que se passeie pelas ruas de Sófia. Num café em frente à Ópera, faz um pedido imperceptível para um português que não entenda búlgaro. Afinal, já teve tempo para aprender a desenrascar-se nas coisas mais básicas como pedir um café e uma água. “Sei falar o básico. Consigo adaptar-me sem grandes problemas mas a língua foi uma dificuldade. Quase ninguém usa o inglês na Bulgária e a informação não circula. Só há pouco tempo descobri que existiam duas escolas que fornecem búlgaro para estrangeiros a preços acessíveis. Na universidade os preços são uma barbaridade: cursos intensivos de búlgaro a 300 euros por semana”.
Fala da Bulgária como se lá tivesse vivido desde sempre, conhece inclusive os seus meandros mais recônditos, como os altos níveis de corrupção política e financeira que obrigam as pessoas a reterem “estratégias de vida assentes em mecanismos de sobrevivência. A Bulgária está a passar por um processo quase selvagem de privatização e sente-se que algo vai mal. As condições são muito precárias, o país é pobre e o investimento público é mal dirigido”, analisa Francisco Nazareth.
Tudo isto é bem visível ao nível do ensino. A sala de estudos portugueses onde Nazareth ensina está localizada não na reitoria mas a cerca de 5 km do centro da cidade. É pequena, não tem impressoras nem uma única ligação à Internet. Mas o leitor tenta contornar a falta de meios, “eu e os alunos organizámos uma festa para comprar uma impressora. A universidade não investe e também não existe uma colaboração dentro do corpo docente no sentido de fazer avançar os estudos portugueses. Muitas vezes os professores estão mais preocupados com a sua carreira do que com o ensino”.
Contrapondo o desleixo de alguns professores, os alunos búlgaros são muito aplicados, têm uma cultura geral vasta e sabem, segundo Nazareth, muito mais do que os portugueses. Mas o leitor também lhes encontra alguns defeitos: “o problema é que sabem de uma maneira pouco crítica, ou seja, não estão habituados a colocar em causa o discurso oficial do professor. É muito difícil mobilizar os alunos dentro da sala de aula para serem dinâmicos. São muito envergonhados. Têm medo de errar.”
“Para um Checo é fácil aprender tudo”O sotaque constitui, para os aprendizes da língua, um dos principais entraves. Rita Rolim diz que os polacos, por exemplo, têm muitas dificuldades em lidar com a língua portuguesa a um nível vivencial. “Nem sempre conseguem captar a pronúncia, têm problemas com os ‘r’ e em distinguir o avô e a avó”, conta a leitora. Joaquim Ramos desdramatiza: “para os polacos é mais fácil porque eles têm os ditongos nasais enquanto para os checos é difícil o ‘lhe’, mas no geral conseguem”. A conclusão a que o professor chega é que “para um Checo é fácil aprender tudo. Eles estudam imenso e depois tem uma coisa muito boa que é um Inverno muito rigoroso. Não dá para ir para a ‘night’. Não têm nada que fazer, estudam”. Joaquim explica que muitos chegam a tirar dois cursos em simultâneo: “Música e Direito”, exemplifica.
Joaquim Ramos conhece bem a realidade checa depois de dois anos no país. Antes de ser leitor do Instituto Camões em Praga e Brno, foi professor de português técnico – económico e jurídico – em duas universidades do sudeste da República Checa. “O Português ensina-se em seis universidades, dois liceus e uma escola profissional”, enumera de cor, “há três licenciaturas em Língua e Cultura Portuguesas e depois há cursos universitários onde os alunos compõem o seu próprio currículo, com o bloco de português inclusive”.
Também este português de Viseu fez duas formações distintas. Primeiro, jurídica e que lhe permitiu ser funcionário das finanças durante alguns anos. Depois, linguística, que o trouxe até à República Checa e aos quadros do Instituto Camões. “Quando surgiu a oportunidade de concorrer ao Instituto Camões, achei que era um desafio interessante. Concorri e foi a melhor coisa que fiz, porque além de lidar com a Língua Portuguesa, o que me apaixona, ainda posso lidar com a cultura”.
E ideias não lhe faltam. “Fazemos encenações nos parques de Praga, leitura de poesia em português, concertos, fins-de-semana ‘non stop’ com música portuguesa, lusófona, africana”, descreve. O objectivo é claro: “desenvolver uma série de actividades que facilitem a aprendizagem da cultura e da língua”. Joaquim acabou por ser vítima de uma dessas actividades. Acontece-lhe sair frequentemente com os seus alunos até um dos muitos cafés de Praga. Nestes espaços de tertúlia, desconhecidos dos turistas, Joaquim só tem autorização para falar em Português. “Quero às vezes praticar, mas dizem-me: ‘Não! Queremos aproveitar porque temos aqui um nativo’. Portanto não posso ir tomar uma cerveja e tentar explorar o meu checo. Ninguém quer saber disso para nada”, lamenta justificando que só sabe falar o mais básico: “Numa ida ao supermercado tenho que falar checo. É muito difícil. Para mim é a língua mais difícil do mundo. Muito mais difícil que o chinês e essas coisas.”
Uma outra ideia já em desenvolvimento é o apoio linguístico à comunidade de estudantes portugueses de medicina, em Pilsen, no Sul da República Checa. “Vamos abrir um curso de português clínico para lhes facilitar a vida. Eles aprendem em inglês e, eventualmente, em checo. Um médico chega a Portugal e uma velhinha diz andar enjoada e que tem ‘um mal macho’[um qualquer problema de saúde]. ‘O que é isso?’, pergunta. A senhora não sabe explicar de outra maneira e o médico não a percebe por não ter formação contextualizada”, explica Joaquim Ramos.
E os projectos estendem-se aos outros Centros de Língua Portuguesa e leitores do Instituto Camões. Na Eslováquia, por exemplo, prepara-se o primeiro dicionário de Eslovaco-Português. Com o apoio do IC e da Fundação Gulbenkian, a equipa de dez pessoas do Instituto de Português não tem mãos a medir. “Andamos todos com dores de cabeça. Mas acho que quando acabarmos este projecto, uau!, vamos festejar todos”, exclama Zuzana Chudikova, e percebe-se o seu entusiasmo quando explica que “até agora se aprendia o português através do checo, do inglês e do francês”.
Regresso a casaEnsinar português na Europa Central e de Leste não é tarefa exclusiva dos leitores do Instituto Camões. Muitas são as nacionalidades dos docentes que tentam levar a cultura e as tradições lusófonas aos quatro cantos do mundo. Ana foi aluna de Zuzana. Tem 32 anos e é eslovaca. Durante três anos estudou português na Universidade de Banska Bystrica. Teve dois professores eslovacos, um brasileiro, um angolano e um português. Na Hungria a diversidade é menor. Borbála Pálfy, uma ex-estudante de português de 25 anos, queixa-se de ter tido mais professores húngaros do que portugueses ou brasileiros, o que acabou por lhe dificultar a vida. “Quando fui para Portugal, fazer Erasmus em 2004, acho que passei dois meses sem falar nem entender nada porque estava habituada a ouvir falar os meus professores de cá”. Esquecidas no dicionário ficaram algumas das muitas palavras portuguesas que foi aprendendo durante o curso, daí a falhas gramaticais que vai deixando escapar ao longo da conversa. Não se esquece, porém, do espírito académico com que foi recebida em Coimbra e não poupa elogios: “Portugal é muito fixe, é a minha segunda casa. Não há um ano em que não vá lá passar férias”.
Bárbola ouve Madredeus e vê alguns filmes portugueses. Ana gosta de fado e adora a poesia de Sophia de Mello Breyner. Zuzana cita de cor nomes como os de Cristina Branco e Mariza. Encurtam as distâncias com pequenos objectos, um CD ou um livro são o suficiente. Mas nem todos matam saudades com música e palavras. O regresso é unanimemente apontado por Rita, Joaquim e Nazareth como o fim último da sua missão de ensinar português pelo mundo. Joaquim resume o sentimento: “como um bom marinheiro que sou, de um país de marinheiros, faz sempre parte dos meus planos futuros regressar ao meu porto de abrigo. Agora quando é que não sei.” Até lá são os voos da TAP e as novas tecnologias que o vão pondo em contacto com Portugal, “É mais ou menos fácil gerir a distância porque temos ‘Skype’, temos o ‘Messenger’ e temos voos da TAP que permitem fazer Praga-Lisboa em menos tempo do que Lisboa-Viseu se houver hora de ponta nas portagens de Alverca”.