Há monstros no musical
Alguma crítica recebeu de forma pouco entusiástica "Sweeney Todd", acusado de pouco inovar no contexto da "burtoniana" essencial. Antes de mais, é preciso levar em conta a origem teatral do material. As opções estéticas de permanecer "fiel" ao musical de Stephen Sondheim determinam que "Sweeney Todd" - adaptação do espectáculo estreado na Broadway em 1979 - tenha que ler-se neste contexto: Burton entendeu que tinha que deixar marcas fundamentais do texto, não ignorando a dimensão operática (embora nunca aprofundando em excesso a ligação com as "óperas" de Kurt Weill) e não sem explorar a radical modernidade da partitura, o que lhe permite transportar um texto teatral para a mobilidade fílmica de uma câmara que explora na perfeição as hipóteses do digital - em vertiginosos "travellings" sobre o cenário reminiscente do palco, mas renovado em cores soturnas que remetem para o imaginário vitoriano.
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Alguma crítica recebeu de forma pouco entusiástica "Sweeney Todd", acusado de pouco inovar no contexto da "burtoniana" essencial. Antes de mais, é preciso levar em conta a origem teatral do material. As opções estéticas de permanecer "fiel" ao musical de Stephen Sondheim determinam que "Sweeney Todd" - adaptação do espectáculo estreado na Broadway em 1979 - tenha que ler-se neste contexto: Burton entendeu que tinha que deixar marcas fundamentais do texto, não ignorando a dimensão operática (embora nunca aprofundando em excesso a ligação com as "óperas" de Kurt Weill) e não sem explorar a radical modernidade da partitura, o que lhe permite transportar um texto teatral para a mobilidade fílmica de uma câmara que explora na perfeição as hipóteses do digital - em vertiginosos "travellings" sobre o cenário reminiscente do palco, mas renovado em cores soturnas que remetem para o imaginário vitoriano.
Este transporte de um "meio" para outro (Burton nunca cede à tentação de teatralizar) permite-lhe, inclusive, fazer com que Johnny Depp vocalize o "parlando" das renovações melódicas de Sondheim e dá a Helena Bonham-Carter, excelente no modo como sexualiza a personagem e como canta os resquícios de balada que atravessam a partitura, a possibilidade de cumprir as exigências vocais que "Sweeney Todd" exige.
O gosto pelo "gore"Uma das questões essenciais que este musical levanta é o facto de, apesar das regras canónicas, tanto da Broadway, quanto de Hollywood, de associar mecanicamente Musical e Comédia (veja-se a vitória de Depp, nos Globos de Ouro, como melhor actor de Comédia ou Musical e de "Sweeney Todd" como melhor filme de Comédia ou Musical), é que tal associação não faz sentido. "Sweeney Todd" debruça-se sobre os malefícios da Revolução Industrial, sobre um sistema judicial corrupto e sobre memórias visuais e iconográficas de um tempo que incorpora o grande romance "realista" de Charles Dickens, bem como uma abundante literatura de cordel, repleta de crimes hediondos e exibições despudoradas de sangue derramado, arriscando um tema "impossível" para um musical centrado no crime sem remorsos e em personagens negativas. Estabelece com o público uma relação de intimidação sem tréguas, nem complacências. Não se hesita em convocar pedofilia, antropofagia, a monstruosidade instituída em regra de correcção da sociedade injusta que se retrata. Do ponto de vista musical, Sondheim faz corresponder o esfacelamento do número musical no todo. O herói, o barbeiro "serial-killer" (personagem criada por Len Cariou na Broadway), comanda a acção com a sua cúmplice Mrs. Lovett, mas não existe qualquer lógica que escape ao disparate das peripécias excessivas do "Grand Guignol". E não há na punição final qualquer moralidade tranquilizadora.