A crise do BCP e a falibilidade da regulação bancária
O nosso sistema consiste numa teia de cumplicidades e de fidelidades que se protegem mutuamente sob a batuta omnipresente do poder que está. Não há [depois do processo do BCP] uma só garantia de que o regulador seja mais diligente daqui em diante, porque tudo acabou como devia: a ordem está assegurada e o destino entregue a gente de confiança.
Mais tarde ou mais cedo Portugal iria ter o seu escândalo financeiro. Não porque a supervisão não seja infalível, como afirmou com impudência Vítor Constâncio no Parlamento, mas porque a supervisão que temos é falível para além do aceitável. Por três razões:
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Mais tarde ou mais cedo Portugal iria ter o seu escândalo financeiro. Não porque a supervisão não seja infalível, como afirmou com impudência Vítor Constâncio no Parlamento, mas porque a supervisão que temos é falível para além do aceitável. Por três razões:
A primeira razão tem a ver com as fragilidades do próprio Banco de Portugal (BdP). Desde há mais de uma década que as condições na área da supervisão se deterioraram muito, e sem uma liderança capaz, o departamento de supervisão deixou de adoptar procedimentos eficazes e desenvolver competências ajustadas ao negócio bancário moderno.
A responsabilidade de Vítor Constâncio nesta matéria é pessoal e intransmissível. Como primeira figura da instituição, e não sendo especialista no assunto, o seu dever era propor ao Governo pessoas que estivessem à altura da principal atribuição que o banco tem hoje. Mas não. Preferiu antes rodear-se de figuras pálidas que não lhe fizessem sombra e, assim, afirmar como o Rei-Sol que “o banco é ele”. A tragédia de Constâncio é que o seu desejo de merecer a admiração pública o deixa agora despido e sem uma segunda linha para o proteger do braseiro que a sua própria aventura criou.
O drama do BdP é, porém, muito maior: o descrédito a que fica associado mancha irremediavelmente a história de uma das mais ilustres instituições do país. Do processo BCP fica a impressão nítida de que a supervisão se contentou em pedir esclarecimentos aos suspeitos quando havia indícios anormais e depois esperar que estes lhe enviassem a informação que entendessem. Em lugar de se fazerem acções de investigação discretas e sem aviso prévio, com buscas a computadores, inquirição de funcionários e arrolamento de documentação, cumpriram-se apenas formalidades processuais.
Poucos dias antes da assembleia geral do BCP alguém dizia que ainda se estava à espera de que o banco mandasse os elementos pedidos pelo regulador sem que da parte deste houvesse o menor esforço para impedir a ocultação e a destruição de evidência. O argumento capcioso de que há doze milhões de operações vivas não serve rigorosamente de nada, porque nestas não estão sequer aquelas que o regulador não sabe e tem a obrigação de saber, sobretudo quando as irregularidades são contadas na praça pública durante anos sem que as autoridades pareçam importar-se muito com isso, como se fizessem o possível para as ignorar e com isso darem a aparência de que está tudo sob controlo. Uma charada que tem uma razão muito forte por trás: é que no momento em que os responsáveis do banco admitem que sabem, têm de confrontar o sistema e isso é a última coisa que os supervisores fazem de livre vontade.
A segunda razão vem de fazer as coisas à maneira do dito sistema. Um sistema que consiste numa teia de cumplicidades e de fidelidades que se protegem mutuamente sob a batuta omnipresente do poder que está. Ele envolve políticos, burocratas, carreiristas de empresas públicas e semiprivadas e, também, empresários alinhados. Os seus membros usam influências e servem-se de compromissos para resolver de forma hermética e opaca os assuntos do país e, por isso, pouca importância dão à necessidade de dotar Portugal de instituições autónomas e de uma cultura de rigor e de transparência, necessárias para os mercados funcionarem bem. Debaixo da aparência de civilidade e de respeitabilidade, tudo se faz neste sistema, e o forte instinto de sobrevivência que os seus membros revelam sugere que em Portugal tudo se passa e nada acontece. Lá fora é que as coisas acontecem, cá dentro não... até que apareça o raro outsider e mostre que não é nada assim.
Quem seguiu o processo da eleição da nova administração do BCP reparou que foi evidentemente a lista do sistema que saiu vencedora: com o beneplácito do Banco de Portugal e a bênção do Governo, esta haveria também de ser consagrada pelos grandes accionistas, aqueles que, salvo raras excepções ainda por esclarecer, apoiaram a administração agora posta em causa e todas as tentativas de emanação desta. O sistema cerrou fileiras e mais uma vez consegui impor quem deu garantias da sua manutenção. E se dúvidas havia sobre o desfecho das averiguações em curso, outras nasceram com a travessia do Rubicão, pois não há agora uma só garantia de que o regulador seja mais diligente daqui em diante, porque tudo acabou como devia: a ordem está assegurada e o destino entregue a gente de confiança.
Na crise que afectou o sistema bancário japonês durante os anos noventa, há dois testemunhos que dão que pensar a quem assiste à actual crise portuguesa. O primeiro é de Gary Brinson, na altura CEO do gigantesco fundo de investimentos Brinson Asset Management, que afirmou: “Dizem que o problema dos bancos japoneses é que é tudo fumo e espelhos com as contas. Penso que é muito pior do que isso. Temo que eles nem saibam que o problema são eles mesmos.” O outro é de Vittorio Volpi, à data responsável pela Union des Banques Suisses em Tóquio: “As pessoas honradas só podem ir até certo ponto para além do qual são agarradas pelo sistema. Os japoneses têm este péssimo hábito de proteger a tribo a todo o custo. Coisas que são consideradas criminosas noutro lugar, no Japão são aceites desde que feitas para proteger e manter o sistema.”
A terceira razão vem da própria arquitectura da supervisão portuguesa, que por estar repartida é menos eficaz do que poderia ser e está desadaptada ao funcionamento dos novos mercados financeiros. Numa época em que os bancos se confundem cada vez mais com hedge funds, em que brokers oferecem contas de depósitos, em que partes importantes do negócio segurador coincidem com fundos de investimento e as seguradoras emprestam balanço e controlam bancos, em que private equity funds são puros intermediários financeiros e em que hedge funds disputam aos bancos o papel de credores, não se percebe o argumento que sustenta a separação de funções atribuídas ao Instituto de Seguros de Portugal, ao Banco de Portugal e à CMVM.
Na simbiose e dinamismo que caracterizam os mercados financeiros actuais não colhe mais a tese de que a uns cabem funções correctivas e a outros funções preventivas. E sempre que as várias entidades supervisoras intervêm conjuntamente é preciso usar de grande habilidade para gerir complicados equilíbrios que decorrem de se ter objectivos e agendas diferentes, cultura diferente e pedaços de informação também diferente. Foi isso que aconteceu no caso Champalimaud/Santander, no episódio do Totta-Banesto, na compra do Sottomayor pela Mundial e na cooperação que o BCP teve da Império para a OPA sobre o BPA. A descoordenação pode vir das pessoas, mas deve também muito à má organização. Só com boa organização se consegue, por um lado, clarificar a liderança e definir a responsabilidade e, por outro lado, reforçar sem redundâncias a informação e a competência, com evidente economia de recursos.
O caso BCP parece contemplar um vasto conjunto de situações que tudo indica atravessam praticamente todos os campos da supervisão e da regulação do mercado de capitais. Constitui por isso uma boa oportunidade para se começar a rever todo o sistema de regulação das actividades financeiras em Portugal. A concentrarem-se todas as actividades numa Autoridade do Sistema Financeiro, verdadeiramente independente, haveria ainda duas outras vantagens adicionais: a primeira, ter um instituto mais forte e melhor apetrechado para fazer face ao poder dos bancos, que em Portugal, um país pequeno e fechado, é considerável. A segunda, acabar de vez com a confusão que persiste no espírito dos responsáveis do Banco de Portugal, concretamente sobre se a prioridade deste é o acompanhamento da economia ou a supervisão bancária.
Professor de Finanças na Universidade de Wisconsin (EUA). Ex-director do Departamento de Estatísticas e de Estudos Económicos do Banco de Portugal