O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford

Ron Hansen, o autor de "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford" (edição Magnólia), prefere falar disto: do bem e do mal, nesta fase em que já não sabemos se o bom é Jesse James, o homem que encontramos no dia 7 de Setembro de 1881 sentado numa cadeira de baloiço a fumar um charuto e a planear um assalto enquanto a mulher limpa as mãos rosadas ao avental de algodão, e o mau é Bob Ford, o cobarde que o matou no dia 3 de Abril de 1882 porque não sabia se queria ser ele ou se queria ser como ele. Ron Hansen prefere falar disto do que alinhar em grandes teorias da conspiração sobre o regresso do "western" e sobre a sua permanência como paisagem, narrativa e referente moral de uma certa América mítica (o paraíso perdido tal como o "middle american" nunca o conheceu, a não ser dos filmes).

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Ron Hansen, o autor de "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford" (edição Magnólia), prefere falar disto: do bem e do mal, nesta fase em que já não sabemos se o bom é Jesse James, o homem que encontramos no dia 7 de Setembro de 1881 sentado numa cadeira de baloiço a fumar um charuto e a planear um assalto enquanto a mulher limpa as mãos rosadas ao avental de algodão, e o mau é Bob Ford, o cobarde que o matou no dia 3 de Abril de 1882 porque não sabia se queria ser ele ou se queria ser como ele. Ron Hansen prefere falar disto do que alinhar em grandes teorias da conspiração sobre o regresso do "western" e sobre a sua permanência como paisagem, narrativa e referente moral de uma certa América mítica (o paraíso perdido tal como o "middle american" nunca o conheceu, a não ser dos filmes).

É o que lhe pedimos para fazer, quando lhe ligamos, depois do Natal, e ele atende: como escritor que frequenta o Velho Oeste americano (antes de "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford", que publicou em 1983 e 24 anos depois deu um filme realizado por Andrew Dominik e produzido/protagonizado por Brad Pitt, escreveu "Desperadoes", uma espécie de "whatever happened" ao gangue dos Dalton), como explica o eterno retorno do "western" à ficção (e quando dizemos ficção queremos dizer imaginário) americana? Ele tem uma resposta elementar, primeiro. Diz que o regresso do "western" tem a ver com o facto de o grande público perceber que esse é o território natural das boas histórias ("muito boas histórias, histórias mais elementares"), agora que se fartou dos filmes de terror e dos "blockbusters" de acção, e que "a paisagem é mais bonita no Oeste". Mas tem uma resposta menos elementar, depois, quando diz que, "periodicamente", não é do Oeste que falamos quando falamos do Oeste: "Os filmes que John Ford faz a seguir à Segunda Guerra Mundial não são histórias de índios e cowboys. São "westerns", de facto, mas são "westerns" em que o que está em causa é restaurar uma comunidade, reparar os danos, e em que o elemento do fora-da-lei é utilizado metaforicamente em representação da Alemanha nazi, por exemplo".

O "western", hoje, pelo Iraque?

Era aqui que queríamos chegar: ao "western" como metáfora da recomposição da América depois de situações-limite como a II Guerra Mundial, o Vietname e, agora, o Iraque. Há alguma coisa no "western" que garante que tudo está bem quando acaba bem (mesmo quando não sabemos se o fora-da-lei é bom ou mau, sabemos que, no final, o Oeste foi ganho), nessa luta entre a civilização e a selvajaria - e também há alguma coisa no "western" que garante que essa luta nunca vai acabar, por muitos comboios que cheguem e por muitos fora-da-lei (podem chamar-se Jesse James e podem chamar-se Liberty Valance: o "middle name" deles é sempre América) que sejam assassinados com um tiro nas costas.

Ron Hansen, dissemos, prefere falar do bem e do mal (é um "middle american" do Nebraska e é um escritor católico) do que discutir a política do "western", um tema que, admitimos, pode ser um bocadinho o sexo dos anjos. "Sinceramente, não sei se o Iraque tem alguma coisa a ver com o sucesso recente do "western", que de facto é um fenómeno televisivo importante. Acho que as pessoas estão a evitar o tema do Iraque - preferem olhar para um mundo que já não existe do que olhar para o mundo contemporâneo. Os filmes que lidam com o Iraque não têm sido bem-sucedidos. As pessoas estão cansadas, querem ver outra coisa. E o "western" pode bem ser o tipo de entretenimento - elementar - que elas procuram", supõe.

Ele sabe o que procura no Oeste: "Nasci no Nebraska, que tem muitos elementos do Velho Oeste, e os grandes espaços ao ar livre [o "great wide open" que também parece inscrito no ADN americano] sempre me atraíram muito. Na minha escrita, procuro sempre meios de as pessoas saírem para o ar livre. Não estou muito confortável fechado, dentro de casa, com as minhas personagens - a maioria das coisas acontece lá fora". Também gosta de cavalos e também gosta de História - e a conquista do Oeste é aquilo que na América mais se aproxima de um mito fundador (é um país que, para todos os efeitos, praticamente só tem Pré-História e História moderna), por isso Ron Hansen não sabe bem em que prateleira arrumar "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford". "Os "westerns" que escrevi são baseados em acontecimentos históricos e, portanto, também são romances históricos. São narrativas sobre pessoas reais que fizeram coisas reais - algumas bastante horríveis".

Nesse sentido, "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford" é toda a verdade sobre uma história muito contada, mas também muito mal contada. Há mais realidade do que ficção no romance de Hansen, uma realidade minuciosamente descrita e enumerada, como num relatório, diz ele: "80 por cento do que escrevi é realidade. Se há um assalto, é porque houve um assalto. Se alguém morre, é porque morreu - e a data da morte é a data correcta. É óbvio que os diálogos são inventados [então Jesse James nunca perguntou a Robert Ford "tu queres ser eu ou queres ser como eu?"], e muito do material sobre o Bob Ford também é inventado. É uma personalidade que continua subdocumentada, não se sabe sequer se chegou a participar nalgum assalto com o gangue de Jesse James".

Ron Hansen põe Robert Ford no local de um dos crimes, o assalto ao expresso dos caminhos-de-ferro Chicago and Alton. É aí, na página 18, que o escritor começa a construir uma relação entre Robert Ford, "um jovem rapaz com uma cartola cinzenta e um casaco preto largueirão", e Jesse James, um fora-da-lei com um "aspecto tão temível como o do Rei Henrique VIII".

O facto e a lenda

6673 resultados se fizermos uma pesquisa de livros sobre Jesse James na Amazon e Ron Hansen ainda achou que faltava dizer alguma coisa. E faltava. "Faltava perceber a relação de Jesse James com o seu assassino. Há muitos livros sobre Jesse James, de facto. Mas as histórias que se contam andam sobretudo à volta dos assaltos que ele planeou, dos crimes que cometeu, das pessoas que matou (17, tanto quanto se sabe) - e depois, vindo do nada, aparece o Bob, e o Bob é o cobarde que o mata, fim. Eu sabia que havia uma história mais complicada - tinha de haver arredores mais complexos. O Jesse James praticamente entregou-se aos irmãos Ford: ou queria matar-se e foi um gesto suicida ou queria emocionar a América. Para mim essa "rendição" é Jesse James a atirar a moeda ao ar, como se fosse a última oportunidade que lhes dava de o matarem antes que ele os matasse. Ele era um fora-da-lei, gostava da adrenalina, de se pôr assim nas mãos do destino".

Entre Jesse James - o facto - e Jesse James - a lenda (e aqui, definitivamente, o facto tornou-se lenda) -, Ron Hansen não imprimiu nenhum dos dois. "Inverti a lenda sobre Jesse James: a lenda de que ele era um Robin dos Bosques americano, um fora-da-lei que roubava aos ricos para dar aos pobres. Isso nunca foi verdade. Mas imprimi uma lenda sobre Robert Ford, ao recusar a teoria de que matou Jesse James porque tinha medo que Jesse James o matasse e ao refazê-lo como uma pessoa encurralada numa esquina, a reagir e a tentar viver com dignidade, apesar de toda a América o tratar como um cobarde. A recusa dele em pedir desculpa por ter assassinado Jesse James, a recusa dele em transformar-se na pessoa que a América queria que ele fosse, mataram-no", explica. É aí que o encontramos dez anos depois da morte de Jesse James e dias antes da sua própria morte: nessa nota de rodapé da História americana (que é, ainda hoje, uma história da violência): "A cada ano que passava, desde 1882, Bob estava mais longe da História, mas, ainda assim, menções a Robert Ford surgiam periodicamente nos jornais do Colorado e do Missouri, em reportagens enojadas, sugerindo que era uma pena que o cobarde ainda andasse por aí a pavonear-se, apesar das duas ou três notícias falsas que surgiam em cada mês e que davam conta de que tinham cortado a garganta ao assassino de Jesse James numa ruela de Oklahoma ou que ele tinha morrido de tuberculose ou de pneumonia e que o tinham enterrado na vala comum.

Nenhuma das notícias que ele lia tinha o cuidado de informar a data e o local do seu nascimento, quem eram os seus pais e como foi criado; nunca faziam referência à Escola Moore, a Blue Cut, à mercearia, ao seu acordo com o governo; aparentemente, bastava dizer que Bob Ford era o homem que assassinou Jesse James, como se toda a sua existência pudesse ser contida num único acto de perfídia. Ele tinha a noção de que nunca seria perdoado, de que ninguém faria discursos, aliás, provavelmente, ninguém apareceria, sequer, no seu funeral, os correspondentes não viajariam até Creede, o seu crânio não seria cirurgicamente aberto nem frenologicamente examinado, as fotografias do seu corpo mergulhado em gelo não seriam vendidas nas drogarias, as pessoas não invadiriam as ruas sob uma chuva intensa para assistirem ao cortejo fúnebre de Bob Ford, não seriam escritas biografias dele, ninguém daria o seu nome aos filhos, ninguém pagaria vinte e cinco cêntimos para visitar os quartos da casa onde ele cresceu. Ele já não tinha grandes aspirações, agora no Colorado, como tinha tido no Missouri, mas uma, pelo menos, tinha: a de que Robert Newton Ford ficasse na História como mais do que o autor de um disparo no dia 3 de Abril de 1882", escreve Ron Hansen a poucas páginas do fim.

Até este livro, e até este filme, Robert Ford nunca foi mais do que isso: conhecemo-lo por ser o assassino de Jesse James (antes de abrir um "saloon", no Colorado, ganhou a vida a posar para fotografias como "o homem que matou Jesse James" e fazer dele próprio em espectáculos populares que nunca tiveram grande sucesso), como conhecemos Mark Chapman por ser o assassino de John Lennon e como conhecemos Lee Harvey Oswald por ser o assassino de John Kennedy (e Jack Ruby por ser o assassino de Lee Harvey Oswald). "É mais ou menos a mesma história, vezes sem conta", concorda Ron Hansen. É a história de um cobarde, como Jack Ruby. E a história de um homem que mata "the thing he loves", como Mark Chapman. "O que aconteceu a Bob Ford é aquilo que acontece a muitas pessoas quando são jovens: associam-se a alguém que admiram e que acabam por emular, mas depois percebem que têm de se ver livres dessa referência, porque não há espaço para os dois, ou porque a grande referência se transformou numa grande desilusão.

É uma história muito familiar", argumenta. Não tem de argumentar: gosta de Robert Ford como gosta de Judas (e é diácono, numa diocese da Califórnia). "O Assassínio de Jesse James pelo Cobarde Robert Ford" é um "western" e é um romance histórico, mas também é uma reconstituição dessa traição original que vem na Bíblia (a Bíblia que Jesse James "abria sempre com grande alarido"), uma alegoria: "Sou católico, é verdade que usei esses elementos. O Jesse James era cristão, filho de um reverendo baptista, e isso dominava o vocabulário dele e a maneira como encarava a vida. Não queria tratá-lo como se trata um Messias, porque em quase todos os aspectos ele é exactamente o contrário, mas de facto Bob é uma espécie de Judas. Mais no sentido em que Judas também é uma personagem subdocumentada, vagamente referida em duas ou três passagens do Novo Testamento, e que mesmo assim toda a Humanidade trata como um traidor da pior espécie. No caso de Robert Ford, como no caso de Judas, não sabemos a história toda".

América, América

Uma história elementar em que os bons são maus e os maus são bons, precisamente, como nos melhores "westerns". Isso, e também um "statement" sobre o "star system" como cultura (e é tudo tão americano que até dói). Ron Hansen não quis ir atrás de Jesse James por estar fascinado com a personagem. Quis ir atrás de Jesse James por estar fascinado com o que acontece a uma figura quando ela se torna lendária, quando ela deixa de ser uma pessoa para passar a ser uma mitologia. "Tanto o meu romance como o filme tratam do que acontece quando mitificamos as pessoas, quando os elementos de idolatria entram na relação que um país tem com o seu mais famoso fora-da-lei. Escrevi-o como uma reflexão sobre a televisão, sobre a cultura das celebridades - e acho que foi isso que atraiu o Brad Pitt no livro. De tanto se escrever sobre ela, de tanto se falar sobre ela, parece que a pessoa real, a pessoa por trás do mito, deixa de existir", diz Hansen.

Que tipo de país escolhe um fora-da-lei como "local hero" é a questão que nós, os europeus, temos de colocar. Ele responde assim. "Os americanos tinham medo de Jesse James. Mas, quando ele morreu, passou a faltar alguma coisa na vida deles. Acho que há qualquer coisa nele que a América adora, como se adora uma "action figure" - uma "action figure" muito corajosa, como ele era de facto. Mas vejamos o Elvis, vejamos o James Dean, vejamos a Marilyn Monroe: esta é uma história peculiarmente americana sobre o que acontece a uma pessoa quando ela morre, e sobretudo quando ela morre cedo".

Talvez sejamos demasiado europeus para perceber os americanos que chamam Jesse aos filhos. Hansen é suficientemente americano para achar isso normal e anormal, ao mesmo tempo. "A mentalidade "cowboy" ainda é predominante na América. As pessoas podem nunca disparar a sua arma de fogo, mas têm orgulho em tê-la em casa. Conduzem as suas grandes carrinhas pelas cidades como se fossem tratar do gado. Ainda vivem como homens rudes e obrigados a vigiar a Fronteira e a marcar o território. E sou obrigado a dizer que sim, a violência ainda é um traço distintivo da América, mesmo nas cidades mais remotas. Não é surpreendente que o desporto mais popular nos EUA seja o desporto mais violento. A violência é muito reverenciada aqui".

Podemos olhar para a América dessa maneira ou doutra. "O Oeste é o melhor da América no sentido em que é um território em que tudo é possível, em que as pessoas podem reinventar-se. A América ainda é um país em que as pessoas podem recomeçar do zero, não sei se isso é possível na Europa - e a paisagem a céu aberto do Oeste, mais do que o Leste onde as pessoas se amontoam, é o sítio para isso. Não é por acaso que muitas pessoas se suicidam na Golden Gate Bridge, em São Francisco: chegar a São Francisco é chegar ao fim, chegar ao Oeste definitivo. As pessoas não aguentam a ideia de terem chegado até ali e de nada ter mudado na vida delas. O Oeste continua a ser a terra prometida. É o sítio onde o sol se põe - ir para Oeste também é seguir o sol". O sol ainda não se pôs, nem para a América nem para Jesse James ("Um produtor de Hollywood disse-me que nunca ninguém perdeu dinheiro com um filme sobre ele, e isso é parte do apelo"). Há séculos que andamos a tentar matá-los - mas, até agora, as notícias da morte deles têm sido bastante exageradas.

Inês Nadais

(PÚBLICO)