Butte, Montana
E o revisite literalmente: também aqui há um homem em busca do passado e em fuga de si mesmo pelas paisagens da América mítica imortalizadas nos "westerns" de John Ford ou nos quadros de Edward Hopper e Norman Rockwell, referências picturais que Wenders invoca sabia e constantemente ao longo do que é, indubitavelmente, um dos seus filmes formalmente mais cuidados (e, também, mais clássicos).
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E o revisite literalmente: também aqui há um homem em busca do passado e em fuga de si mesmo pelas paisagens da América mítica imortalizadas nos "westerns" de John Ford ou nos quadros de Edward Hopper e Norman Rockwell, referências picturais que Wenders invoca sabia e constantemente ao longo do que é, indubitavelmente, um dos seus filmes formalmente mais cuidados (e, também, mais clássicos).
Mas essa revisitação surge, agora, imbuída da amargura crepuscular de quem percebeu que o mito é uma ilusão e se atirou lá para dentro sem dar por o tempo passar: Howard Spence (Sam Shepard), actor que perdeu a carreira no álcool, nas drogas e no sexo, abandona a rodagem do seu mais recente "western". Abandona-a literalmente: desfaz-se do telemóvel e dos cartões de crédito, levanta o máximo de dinheiro que consegue no banco, regressa à casa da mãe que não visitava há 30 anos e, ao saber por ela que tem um filho de uma mulher com quem namorou durante uma rodagem de exteriores, enceta uma viagem para conhecer a "família" de cuja existência nunca suspeitou. O herói duro, silencioso e solitário dos "westerns" é uma fachada estilizada que esconde um homem sozinho, sem lar nem razão de existir, que se confronta com a fraqueza da sua própria existência.
Wenders e Shepard (que assina o argumento tal como já fizera em "Paris, Texas") revelam um insuspeito sentido de humor ao estruturar a narrativa à volta dos lugares-comuns do próprio "western" (desde o agente da seguradora, verdadeiro "homem da Pinkerton", às mães que mantêm uma esmerada educação feminina), ao referenciar constantemente o desfasamento entre estas paisagens (áridas ou urbanas) que parecem vir do fundo dos tempos e a modernidade que está sempre a intrometer-se (os telemóveis, os computadores, o mobiliário urbano do parque de estacionamento). Esta podia também ser a história de um homem fora do seu tempo não se desse o caso de "Estrela Solitária" estar ele próprio fora do seu tempo, prisioneiro de um universo idiossincrático que Wenders e Shepard já cristalizaram há muito tempo e que pouco ou nada tem a ver com o "mundo real" do qual algumas personagens apenas sonham em sair.
Não se trata de um grande Wenders - a personagem do filho e da namorada, a cargo de Gabriel Mann e Fairuza Balk, são caricaturas metidas a martelo, o agente da seguradora de Tim Roth é supérfluo, há uma certa displicência narrativa e um desfasamento entre o tom elegíaco do filme e a narrativa por vezes pedestre. Mas por cada falha dessas há um momento de cinema sublime (a longa panorâmica circular de Sam Shepard no sofá no meio da rua, o modo pictural como Wenders e o director de fotografia Franz Lustig mitificam mesmo o mais banal panorama urbano, a presença luminosa de Eva Marie Saint) que provam que o realizador alemão ainda não perdeu o jeito. É legítimo desejar que "Estrela Solitária" fosse um melhor filme. Mas isso não faz dele um mau filme.