Cremações disparam com novas atitudes perante a morte
Agora os do Porto, com um horizonte temporal mais limitado: em 2005, foram incinerados 626 cadáveres, em 2963 óbitos registados pelo Instituto Nacional de Estatística. Os óbitos num concelho não coincidem precisamente com os funerais aí realizados (alguns não são feitos na cidade de residência), mas dão uma indicação muito aproximada: no Porto, a cremação ocorre em cerca de 20 por centro dos funerais. Nesta cidade, em 2006 houve mais 10 cremações. E este ano, até ao mês passado, já tinham ocorrido 688. Finalmente os de Ferreira do Alentejo: em 2001 houve 48 cremações, que passaram para 134 no ano seguinte. Este ano já somam 235.
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Agora os do Porto, com um horizonte temporal mais limitado: em 2005, foram incinerados 626 cadáveres, em 2963 óbitos registados pelo Instituto Nacional de Estatística. Os óbitos num concelho não coincidem precisamente com os funerais aí realizados (alguns não são feitos na cidade de residência), mas dão uma indicação muito aproximada: no Porto, a cremação ocorre em cerca de 20 por centro dos funerais. Nesta cidade, em 2006 houve mais 10 cremações. E este ano, até ao mês passado, já tinham ocorrido 688. Finalmente os de Ferreira do Alentejo: em 2001 houve 48 cremações, que passaram para 134 no ano seguinte. Este ano já somam 235.
Não há margem para dúvidas: a cremação dos cadáveres não pára de aumentar em Portugal. E tanto assim é que já estão previstos pelo menos mais três fornos crematórios, que se juntarão aos dois existentes em Lisboa (no cemitério dos Olivais e no do Alto de São João), ao do Prado do Repouso, no Porto, e ao de Ferreira do Alentejo. No próximo ano, abrirá mais um forno crematório nos Olivais (Lisboa) e deverá também entrar em funcionamento uma unidade na Figueira da Foz. Ainda sem data prevista de abertura está o crematório do cemitério n.º 3 de São João da Madeira, que está neste momento a ser construído.
Voltando aos números: em Lisboa, até Junho deste ano, em 43,8 por cento dos 4769 funerais realizados a incineração dos corpos foi a opção.
Efeitos da modernidadeQue razões podem explicar este cada vez maior recurso às cremações? Donizete Rodrigues, professor associado de Antropologia na Universidade da Beira Interior, entende que está relacionado com o “contexto da modernidade” e com “a mudança de atitude perante a morte”.
“A industrialização, a urbanização e a racionalidade, como consequências da modernidade, provocam o banimento e a recusa da morte. O objectivo é, com o desenvolvimento da ciência, prolongar a vida e adiar a morte”, explica o professor. Isto resulta num “esvaziamento do lado dramático da morte”, numa “mudança do espaço privilegiado para morrer, da casa, no seio da família, para o hospital”, e na transferência do velório, “a despedida final do morto”, de casa para outros espaços.
É também neste contexto que “o corpo como suporte da alma deixa de ter importância”, para passar a ser olhado apenas como “matéria em decomposição”. “O importante passa a ser a alma, que se desprende do corpo no momento da morte”, diz Donizete Rodrigues. E esta alteração na forma de olhar a morte leva também a uma “abreviação do luto”.
Portugal “está numa fase tardia da modernidade”, revela o antropólogo, pelo que só agora estão a “ocorrer estas mudanças em relação ao corpo depois da morte”, que são, no entanto, “mais visíveis nos centros urbanos, no litoral, onde o processo de modernização é mais forte e dinâmico”.
“Nas zonas rurais, o processo de mudança social é mais lento e, por isso, a cremação não é ainda uma realidade. Nestes contextos, o corpo sepultado (presença física do ente querido falecido) ainda é importante para a prestação da homenagem, ligando o mundo dos vivos ao mundo dos mortos, com o prolongamento do período de luto”, acrescenta Donizete Rodrigues.
Religião já não põe entravesPara esta crescente procura das cremações também terá contribuído o facto de a Igreja Católica e de a Aliança Evangélica Portuguesa darem o aval a este ritual fúnebre. No caso dos católicos, há pouco mais de um ano foram mesmo criados novos rituais, a pensar nos cristãos que são cremados.
Segundo escreve o bispo D. Albino Cleto, numa nota publicada na página de Internet da autarquia de Lisboa, a Igreja Católica aceita a cremação dos corpos, inclusivamente dos cristãos. E cita o Código de Direito Canónico: “A Igreja recomenda vivamente que se conserve o piedoso costume de sepultar os corpos dos defuntos; mas não proíbe a cremação, a não ser que tenha sido preferida por razões contrárias à doutrina cristã.”
É assim desde que o Papa João XXIII, em 1963, levantou a proibição de os cristãos serem cremados. Este impedimento devia-se à tradição antropológica bíblica de fazer regressar o corpo à terra, explica o padre Fernando Sampaio, capelão no Hospital de Santa Maria, em Lisboa. E também ao facto de, em algumas culturas, a cremação estar ligada à idolatria e à necessidade dos cristãos de se demarcarem desses rituais, refere o padre Luís Manuel Pereira da Silva, responsável pelo departamento de Liturgia do Patriarcado de Lisboa.
Quanto aos cristãos evangélicos, para os quais não há entraves à cremação, os líderes espirituais sentem necessidade de reflectir e de fazer um estudo teológico, tendo em conta o que diz a Bíblia sobre a morte, informa o secretário executivo da Aliança Evangélica, Samuel Pinheiro.
Para católicos e evangélicos, que acreditam na ressurreição dos mortos, essa não deixará de acontecer àqueles que escolheram ser cremados. “Quanto à fé na ressurreição, seria ridículo pensar que a cremação lhe levanta dificuldades: para nos dar um corpo ressuscitado, Deus não está dependente nem do pó nem das cinzas”, escreve o bispo Albino Cleto. Samuel Pinheiro concorda com esta visão.
Sem dilemas teológicos, o que leva os cristãos a optar pela cremação? As razões serão iguais às dos ateus: é uma questão prática e o objectivo é não dar trabalho aos familiares, que não terão de se preocupar com campas e a sua limpeza, ou com a necessidade de exumar o corpo anos depois. Há ainda pessoas que ficam sugestionadas com o facto de irem para debaixo da terra e o seu corpo se decompor; há argumentos de higiene, de falta de espaço nos cemitérios e até o factor novidade, enumeram os padres Fernando Sampaio, Pereira da Silva e Carlos Azevedo, capelão do Hospital de Dona Estefânia, em Lisboa.
Samuel Pinheiro acrescenta que a cremação pode diminuir a intensidade do momento da morte. “É sempre mais doloroso ver o caixão, o corpo descer à terra e toda a atmosfera de um funeral”, justifica. O importante, refere Carlos Azevedo, é que “se dê sentido a esse momento”. Por isso, o novo ritual católico prevê um enquadramento para as cremações. Os evangélicos não têm “programas pré-estabelecidos”, diz Samuel Pinheiro, mas cantam e rezam com base em leituras bíblicas porque “a morte é uma passagem, um “até já” dito com esperança”.