Os novos funcionários públicos

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Quando, depois de ver um anúncio de jornal, decidiu candidatar-se a um curso que, ainda por cima, garantia emprego na função pública, Lúcia ouviu comentários de descrença à sua volta.

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Quando, depois de ver um anúncio de jornal, decidiu candidatar-se a um curso que, ainda por cima, garantia emprego na função pública, Lúcia ouviu comentários de descrença à sua volta.

“Podes concorrer, mas isso de certeza são só cunhas. Está vocacionado para pessoas conhecidas”, disseram-lhe. O certo é que “não conhecia ninguém”, foi apurada e hoje é um dos novos rostos da administração central.

A técnica superior Lúcia Vargas, 34 anos, é um dos cerca de 350 diplomados que, nos últimos sete anos, se tornaram funcionários do Estado depois de terem frequentado o Curso de Estudos Avançados em Gestão Pública (CEAGP) do Instituto Nacional de Administração (INA).

Licenciada em Direito, trabalhava em regime de avença num serviço do Ministério da Justiça quando soube da existência do curso. Confessa que a possibilidade de “ficar com vínculo” pesou na decisão de concorrer. Mas também lhe agradou receber uma formação “que tivesse em linha de conta um paradigma da administração pública mais próxima das empresas, diferente [da imagem] de uma certa burocracia e lentidão dos serviços”.

A perspectiva de emprego estável e de ingresso na carreira de técnico superior pesa nas decisões, mas em muitos casos trabalhar para o Estado vai também ao encontro de vocações, tanto mais que, em termos práticos, os diplomados podem propor-se trabalhar nas áreas que pretendem. Para Enrique Martínez Galán, 29 anos, quadro da Direcção Geral dos Assuntos Europeus e Relações Internacionais do Ministério das Finanças, actualmente responsável pelo projecto e conteúdos do portal da presidência portuguesa da União Europeia (http://www.eu2007.pt/UE/vPT/) as perspectivas abertas pelo INA iam ao encontro dos seus interesses. “Identifico-me bastante com o que é o interesse público”, afirma. Licenciado em Economia e mestre em Estudos Europeus estagiara antes em Bruxelas no gabinete do antigo comissário europeu para os Assuntos Económicos e Monetários Pedro Solbes.

Jorge Costa, 36 anos, licenciado em Turismo, com experiência de trabalho como guia, não esconde que procurava emprego estável mas também “um projecto que não fosse uma empresa privada, que tivesse interesse geral, porque a cultura de serviço público é atraente”. Concluído o CEAGP o seu destino foi o Instituto Português da Juventude.

“Tenho tido oportunidades. Já fiz coisas de que não estava à espera”, conta Jorge, que faz uma avaliação muito positiva da sua ligação à administração pública. “Somos ouvidos”, afirma. Tal como Enrique, frequentou o curso de 2004/2005, e o seu currículo inclui já ligações à Estrutura de Missão do Ano Europeu da Igualdade de Oportunidades para Todos, à campanha Todos Diferentes, Todos Iguais, bem como à coordenação da Spot - Feira da Juventude, que o levou a participar em reuniões no âmbito da presidência portuguesa.

No caso de Lúcia Vargas, o CEAGP, que frequentou em 2002/2003, permitiu-lhe descobrir a área do Direito de que mais gosta e reorientar a carreira profissional. O curso dá equivalência à parte escolar do mestrado e depois dele fez uma tese, já publicada em livro (“Julgados de Paz e mediação, uma nova face da Justiça”, Almedina, 2006) e mudou-se para a da Direcção-Geral do Consumidor, onde se “aposta bastante na resolução de conflitos por meios alternativos”.

Crivo apertado

Recém-licenciados com inserção profissional precária, “recibos verdes” do Estado que procuram regularizar a sua situação, funcionários administrativos que desejam passar à carreira técnica, são múltiplas as motivações dos candidatos ao curso. Na sua maioria provêm da região de Lisboa, afinal onde se concentram boa parte dos serviços da administração central, logo as oportunidades de trabalho.

Cumprido com aproveitamento, o CEAGP assegura desde 2000 a entrada na administração do Estado a todos os que o concluam com uma média igual ou superior a 12 valores e um salário que na categoria de acesso está ligeiramente acima dos mil euros. E isso move muitos candidatos. Lúcia Simões, a coordenadora do curso, reconhece que a “possibilidade de inserção efectiva” na função pública é uma condição de sucesso do curso.

O contingente dos que concorrem tem, nos últimos anos, rondado os 800 para cerca de 50 vagas, número fixado anualmente pelo membro do Governo com a tutela da administração pública num despacho que distribui também os lugares por áreas científicas de origem. A procura confirma o elevado interesse por um curso com uma propina de 5000 euros que, nas edições anteriores, têm sempre sido reembolsados com verbas comunitárias. Muitos, como Lúcia Vargas, acabam também por conseguir bolsas das entidades que, depois de análise curricular e de um primeiro contacto, querem desde logo assegurar a sua contratação. Trata-se de garantir funcionários qualificados que, em algumas situações, podem acrescentar um lugar ao quadro de pessoal dos serviços.

As vagas são na quase totalidade destinadas a candidatos sem ligação à função pública, cabendo uma pequena quota a funcionários (na próxima edição, a iniciar em Fevereiro de 2008, 42 são para não vinculados à função publica, oito para vinculados). A experiência mostra que há uma “procura grande” do curso por diplomados das áreas da Economia, Gestão, Direito e Engenharia e que os licenciados em Direito e Economia são os primeiros a ser colocados. Mas da área das engenharias surgem poucos candidatos à função pública, “o que significa que o mercado está a absorver essas licenciaturas”, conclui Rui Lucas, presidente do INA.

Os candidatos são submetidos a uma prova de conhecimentos cuja bibliografia é publicada em “Diário da República” e incide sobre Organização do Poder Político e da Administração Pública em Portugal, União Europeia, Políticas Públicas, Gestão das Organizações e Inglês e ainda sobre uma área à escolha de entre um conjunto que inclui Modelos de Gestão Pública, Políticas Públicas, Relações Internacionais e Tecnologias de Informação e Comunicação. O curso em si consta de três trimestres e de um trabalho final sobre um tema de interesse para a administração pública. “É exigente”, dizem os candidatos contactados pelo PÚBLICO. “Esta gente que consegue entrar na administração pública, merece”, entende Rui Lucas.

“O curso faz parte de um novo processo de recrutamento, de injecção de sangue novo na administração pública, de gente bem preparada, capaz de ajudar à qualidade e à inovação. A grande novidade é que é um concurso nacional, aberto, transparente, com uma prova de admissão, em que entram os melhores. É uma prova cega, com leitura óptica de resultados”, sublinha presidente do INA, que contrapõe o crivo apertado da admissão ao curso às práticas em que “se convidava alguém conhecido e depois havia vagas de regularização”. “Tem havido o reconhecimento por parte dos sucessivos governos de que esta é a forma certa de recrutar”, sublinha.

“Agentes de mudança”

Os diplomados do CEAGP sabem que os olhares recaem sobre eles. “Toda a gente espera que estas pessoas sejam agentes de mudança”, diz a coordenadora, Lúcia Simões. Essa expectativa é confirmada pelos antigos alunos. “É-nos incutida a ideia de que somos os renovadores da administração pública”, explica Jorge Costa, que realça também a ênfase que é dada à importância de uma gestão de tipo empresarial, “virada para o interesse do cidadão”.

Enrique Galán refere a distância que encontrou entre o que lhe foi ensinado e o que encontrou - “é-nos ensinada a necessidade de novos procedimentos de trabalho, mas isso não faz parte das prioridades da administração pública” – mas ressalva que “a fama da administração pública não é a melhor cá fora, mas tem muitos nichos de inovação e qualidade”.

O responsável pelo portal da Presidência portuguesa entende que “há coisas que poderiam melhorar” nos serviços do Estado e socorre-se da sua experiência na UE, onde os funcionários “não podem ficar mais do que X anos na mesma área”, para defender uma mobilidade que deveria ser regra. “Não é normal o funcionário fazer a sua carreira toda na mesma área”, considera. A avaliação pública dos funcionários é outra das medidas que defende porque “o reconhecimento dos bons desempenhos seria importante” como incentivo.

Lúcia Vargas confirma a preocupação do curso em preparar os futuros funcionários para novos desafios, mas considera “quase utópico” o cenário de os quadros formados pelo CEAGP serem os futuros dirigentes da administração pública. “Somos preparados para ser como que gestores públicos mas na prática vamos ser mais um funcionário. Foram muito poucos os que foram absorvidos com o propósito de serem gestores públicos”.

A perspectiva de poderem vir a ter cargos de relevo na administração do Estado é qualquer coisa que não parece estar, pelo menos no imediato, no horizonte dos novos funcionários. “Depende da lei. Se os cargos forem de nomeação política, duvido”, refere Jorge Costa. “Pode acontecer, mas não o sinto como desígnio”, responde Enrique Galán.

Lúcia, Jorge e Enrique fazem um balanço positivo da sua experiência profissional e nenhum refere ter sido mal recebido por funcionários mais antigos, mas todos admitem a existência de situações de desconfiança face a recém-chegados, “principalmente dos que têm mais idade e menos formação”, num contexto de redução do número de trabalhadores do Estado. “Há colegas que estão numa situação de incerteza porque os serviços vão ser reestruturados, outros até se extinguiram”, assinala Lúcia Vargas. “Pode haver alguma desconfiança de pessoas com mais anos de casa”, admite Jorge Costa. “Não tenho uma má experiência, mas tenho ouvido queixas de quem tenha sido posto de lado”, reforça Enrique Galán. “Se as pessoas tiverem o azar de calhar em serviços com práticas antigas, ou em que o imobilismo está instalado, as expectativas podem sair furadas.”

O único inquérito aos diplomados do CEAGP e aos empregadores feito após as quatro primeiras edições, em 2005, dá conta de um balanço positivo quer de diplomados quer de empregadores. Uma percentagem de 56,7 dos 99 ex-alunos que responderam manifestavam um alto grau de interesse pelo trabalho que desenvolviam, 38,9 por cento declaravam um interesse médio e 4,4 por cento consideravam o interesse baixo. A grande maioria, 73,3 por cento, afirmava participar em trabalhos de equipa e 48,9 por cento declarava participar em projectos de inovação e mudança.

No universo dos empregadores, os 84 que responderam avaliavam o desempenho dos formandos nos seis meses anteriores de modo Excelente em 24,1 por cento dos casos, Muito Bom em 50,6 por cento e Bom em 22,9. O grau de adequação do curso às funções exercidas era considerado Excelente por 16,9 por cento, Muito Bom por 1,2, Bom por 67,5, e Suficiente no caso de 14,5 por cento

Alterações no horizonte

Nas primeiras edições o CEAGP era aberto a todas as licenciaturas. Depois passou a haver quotas por áreas e futuramente está previsto um levantamento de necessidades mais rigoroso antes da abertura do concurso. Novidade: o novo regime de vínculos, carreiras e remunerações dos trabalhadores da função pública prevê a possibilidade de o curso passar a decorrer também em outras universidades.

O levantamento de necessidades talvez evite situações como a que esta semana foi denunciada por um grupo de candidatos à próxima edição que frequentaram um curso preparatório do exame de admissão e que, no início de Setembro, foram confrontados com a ausência de vagas para diplomados nas áreas de Agronomia e Medicina Veterinária e com a abertura de uma apenas uma vaga para licenciaturas não incluídas nos grupos “Gestão e Administração Pública e Economia”, “Ciências Jurídicas” e “Engenharias e Tecnologias”. Agora reclamam o aumento do número de vagas ou o reembolso das despesas.

Reservas face ao CEAGP não são coisa nova. Rui Lucas, no INA desde a sua fundação, em 1979, recorda que logo nessa altura existiu o projecto de criação de um curso com estas características – conseguir que os alunos aprovados tivessem entrada directa na administração – mas “não foi possível porque houve resistências”. Só anos depois, com Correia da Campos, actual ministro da Saúde, na presidência do instituto, o projecto foi retomado. Consciente de que não há unanimidade sobre esta forma de entrada nos quadros do Estado, o actual presidente lamenta que se busquem “aspectos negativos numa das coisas mais positivas da nossa administração”. E Lúcia Simões realça que esta é uma forma de entrada na função pública “pelo mérito, única e exclusivamente”.

Mas o assunto está longe ser pacífico. O Sindicato dos Quadros Técnicos do Estado (STE) considera que a garantia de entrada “é uma venda de ingressos” na administração. “O Estado não está a ter em conta muitos funcionários que têm habilitações universitárias e que poderiam aceder às categorias técnicas. Estes têm licenciaturas, mestrados, mas falta dar-lhes as categorias das funções que estão a desempenhar. Está a admitir outros sem investir na formação dos que tem”, diz o presidente do sindicato, Bettencourt Picanço. Há, acusa, uma “marginalização ostensiva” dos candidatos ao curso que já têm vínculo à administração pública. Por um lado, o número de vagas que lhes está reservada é muito pequena. Por outro, “para além de terem de pagar têm de ter autorização dos dirigentes” para frequentar o curso.

Chegar aos serviços idos do CEAGP não significa estar à margem dos problemas comuns a todos os trabalhadores do Estado. Bettencourt Picanço denuncia a existência de casos de funcionários oriundos do curso que já deveriam ter sido promovidos à categoria de técnicos superiores de primeira – o decreto-lei 54/2000 prevê que isso aconteça ao fim de um ano desde que tenham a classificação de Muito Bom – e continuam como técnicos de segunda. Ainda que nem tudo sejam rosas para estes funcionários do século XXI, o seu entusiasmo e formação podem ajudar a mudar a face da administração pública. É isso, e também que muitos deles podem ser os futuros dirigentes da máquina do Estado, que lhes ensinam. Se é o que vai acontecer, só o futuro o dirá.