As melhores intenções
Há fado em "Fados", há tangentes ao fado em "Fados" (e algum do fado e algumas das tangentes são muito boas) - há, em suma, excelente música em "Fados". Há é muito pouco cinema - se entendermos como cinema algo mais do que uma mera sucessão de imagens projectadas num écrã numa sala escura com ou sem linearidade narrativa.
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Há fado em "Fados", há tangentes ao fado em "Fados" (e algum do fado e algumas das tangentes são muito boas) - há, em suma, excelente música em "Fados". Há é muito pouco cinema - se entendermos como cinema algo mais do que uma mera sucessão de imagens projectadas num écrã numa sala escura com ou sem linearidade narrativa.
Estes "Fados" vistos pelo veterano espanhol Carlos Saura, que com eles encerra uma trilogia dedicada às músicas ibéricas (iniciada em 1995 com "Flamenco" e continuada em 1998 com "Tango"), não são tanto um filme como um objecto audiovisual que se limita a filmar actuações musicais e as alinha numa aproximação artística que sugere um mero registo de um espectáculo em necessidade de um programa com as notas explicativas. Às tantas, os "Fados" de Saura fariam mais sentido num palco do que num écrã. Quem não sabe o que é o fado, de onde ele vem, como chegou aos nossos dias, não o saberá por aqui: "Fados" não é um documentário, nem quer sê-lo, mas essa ausência de coordenadas históricas pode tornar frustrante a sua visão.
Em nenhum momento "Fados" traça elementos que permitam ao espectador internacional perceber o porquê das referências à Severa, às modinhas e lunduns, ao fado batido que pontuais legendas vão apondo a alguns dos números. Nem explica o porquê da presença de artistas de Cabo Verde ou do Brasil entre o seu elenco de intérpretes (o que pode não ser significativo para um público português, mas é importante para um público estrangeiro).
Ouvem-se gravações clássicas de Lucília do Carmo e Alfredo Marceneiro, há imagens de arquivo de Marceneiro e Amália Rodrigues, mas, para lá das questões de gosto pessoal, não se explica o porquê da sua importância para o género. Pior: a Amália que vemos e ouvimos (nos ensaios do nunca editado "Soledad" com Alain Oulman) está já na fase terminal da sua carreira, e não se ouve em nenhum momento a Amália que conquistou multidões por todo o mundo, ignorando por sua conta e risco o único referencial anterior a Mariza que muito público internacional tem do fado. Em vez disto, recorre-se ao chavão de uma pretensa (e inexistente) "lusofonia" num pequeno quadro introdutório para justificar a ausência de fio condutor, ficando por explicar o que é o que o grupo Kola San Jon, Toni Garrido, dos Cidade Negra, ou o rapper NBC e os produtores SP e Wilson têm a ver com fado; ou porque é que se convida Lila Downs - que, sendo mexicana, não pertence à "diáspora lusófona" - para reinventar "Foi na Travessa da Palha".
Os espectadores portugueses sabem que Caetano Veloso "adoptou" "Estranha Forma de Vida" no seu reportório e que Chico Buarque escreveu o "Fado Tropical" inspirado pelos acontecimentos do 25 de Abril - mas, internacionalmente, quantos o sabem e perceberão o porquê desta presença? Poderíamos passar por cima disto porque a música é boa, com poucas excepções, se ao menos houvesse grande cinema em "Fados". Mas, à excepção de dois ou três momentos - o "Fado da Severa" que Catarina Moura interpreta acompanhada à sanfona numa conseguida encenação de um teatrinho de cordel na Lisboa de época; a belíssima panorâmica sobre Carlos do Carmo percorrendo ampliações de imagens de Lisboa durante "Um Homem na Cidade"; o plano único sobre Argentina Santos cantando - não há em "Fados" mais do que uma discretíssima (e banalíssima) ilustração musical das performances. Há um engenhoso cenário (desenhado pelo próprio Saura) à base de écrãs, praticáveis e espelhos que permite alguns "brilharetes" visuais, com um uso judicioso e elegante das projecções e iluminação. Mas em nenhum momento se sente um ponto de vista específico do realizador sobre a música que está a filmar; a não ser (e esperamos que não seja...) que ele esteja na aposição de (maioritariamente) desajustadas coreografias de dança interpretativa, que pretendem evocar as origens dançadas do género mas apenas criam ruído visual. Há algo de correcto mas anónimo, de tarefeiro, em "Fados" que quase se diria de teledisco, não fosse estarmos a vê-lo projectado em grande écrã. E talvez não seja assim tão descabido: no fundo, "Fados" é, mais do que um filme, um enorme teledisco para o álbum da banda-sonora (e, desse ponto de vista, faça mais sentido no pequeno do que no grande écrã).
É uma ambição tão válida como qualquer outra, mas face às expectativas, é uma decepção.