Burguesinha reaccionária
E se Mafalda, a burguesinha contestária que deu volta ao mundo na década de 70 com a sua visão pouco ortodoxa da política e da sociedade, tivesse dado emburguesinha reaccionária educada num colégio de freiras e resmungando por lhe terem saído em rifa pais progressistas? Não é seguro que isso tenha passado pela cabeça de Julie Gavras (embora hajauma personagem ausente em "Por Culpa de Fidel" que se chama Quino), e a sua primeira longa de ficção, adaptada de um romance da italiana Domitilla Calamai, não é tanto uma abordagem da política e da sociedade dos anos 70 como uma história (autobiográfica?) sobre as vicissitudes de crescer numa família que faz figura de excêntrica numa Paris ainda demasiado Gaullista. Mas não é nada descabido fazer a comparação: "Por Culpa de Fidel" partilha com as tiras de Quino um humor simultaneamente discreto e ostensivo que funciona ao mesmo tempo em vários níveis e que permite olhar desapaixonadamente,com outra lucidez e o distanciamento necessário, para um passado ainda recente.Estamos na Paris de 1970, e Anna, uma menina de nove anos criada com uma ama cubana que passa a vida a amaldiçoar aos comunistas e educada num colégio de freiras, é apanhada de surpresa pela viragemideológica dos pais, um advogado espanhol que fugiu ao regime franquista (Stefano Accorsi) e umajornalista francesa de uma família burguesa senhorial ( Julie Depardieu). Quando o casal decideinvestir-se no activismo depois da morte do cunhado às mãos do regime franquista e de uma viagem ao Chile em plena era Allende, abdicando de muitos dos confortos burgueses e ajustando o nível de vida (mudando para um apartamento mais acanhado e semjardim, substituindo a velha ama de família por uma sucessão de exiladas) ao mesmo tempo que as relações com o resto da família esfriam, Anna ressente-seviolentamente da mudança, e as coisas começam a aquecer quando os pais a tiram das aulas decatequese. Tente lá explicar-se a uma miúda educada no conforto que agora vai tudo mudar apenas porque os pais decidiram mudar de opinião; e Julie Gavras não os pinta como monstros insensíveis, mas como gente que procura equilibrar família e empenhamento e tenta educar os filhos o melhor que sabe e pode mesmo que isso implique cometer erros. E, num rasgo de inteligência, a realizadora filma tudo ao nível de Anna (Nina Kervel, uma miúda assombrosa sem experiência de representação), para quem asconversas de carteira com as colegas do colégio, as longas noites numa casa cheia de exilados à espera doresultado das eleições municipais no Chile ou um luxuoso casamento familiar na mansão familiar emBordéus são apenas facetas diferentes de uma mesma vivência e a mudança dos pais é algo de adulto que ela apenas consegue apreender em função daquilo que ouve os outros adultos dizer.
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E se Mafalda, a burguesinha contestária que deu volta ao mundo na década de 70 com a sua visão pouco ortodoxa da política e da sociedade, tivesse dado emburguesinha reaccionária educada num colégio de freiras e resmungando por lhe terem saído em rifa pais progressistas? Não é seguro que isso tenha passado pela cabeça de Julie Gavras (embora hajauma personagem ausente em "Por Culpa de Fidel" que se chama Quino), e a sua primeira longa de ficção, adaptada de um romance da italiana Domitilla Calamai, não é tanto uma abordagem da política e da sociedade dos anos 70 como uma história (autobiográfica?) sobre as vicissitudes de crescer numa família que faz figura de excêntrica numa Paris ainda demasiado Gaullista. Mas não é nada descabido fazer a comparação: "Por Culpa de Fidel" partilha com as tiras de Quino um humor simultaneamente discreto e ostensivo que funciona ao mesmo tempo em vários níveis e que permite olhar desapaixonadamente,com outra lucidez e o distanciamento necessário, para um passado ainda recente.Estamos na Paris de 1970, e Anna, uma menina de nove anos criada com uma ama cubana que passa a vida a amaldiçoar aos comunistas e educada num colégio de freiras, é apanhada de surpresa pela viragemideológica dos pais, um advogado espanhol que fugiu ao regime franquista (Stefano Accorsi) e umajornalista francesa de uma família burguesa senhorial ( Julie Depardieu). Quando o casal decideinvestir-se no activismo depois da morte do cunhado às mãos do regime franquista e de uma viagem ao Chile em plena era Allende, abdicando de muitos dos confortos burgueses e ajustando o nível de vida (mudando para um apartamento mais acanhado e semjardim, substituindo a velha ama de família por uma sucessão de exiladas) ao mesmo tempo que as relações com o resto da família esfriam, Anna ressente-seviolentamente da mudança, e as coisas começam a aquecer quando os pais a tiram das aulas decatequese. Tente lá explicar-se a uma miúda educada no conforto que agora vai tudo mudar apenas porque os pais decidiram mudar de opinião; e Julie Gavras não os pinta como monstros insensíveis, mas como gente que procura equilibrar família e empenhamento e tenta educar os filhos o melhor que sabe e pode mesmo que isso implique cometer erros. E, num rasgo de inteligência, a realizadora filma tudo ao nível de Anna (Nina Kervel, uma miúda assombrosa sem experiência de representação), para quem asconversas de carteira com as colegas do colégio, as longas noites numa casa cheia de exilados à espera doresultado das eleições municipais no Chile ou um luxuoso casamento familiar na mansão familiar emBordéus são apenas facetas diferentes de uma mesma vivência e a mudança dos pais é algo de adulto que ela apenas consegue apreender em função daquilo que ouve os outros adultos dizer.
Inevitavelmente, tudo isto tem muito da própria experiência de Julie Gavras - o pai, Constantin CostaGavras, foi um dos grandes cineastas "engagés" dos anos 60 e 70 - e é talvez por isso que "Por Culpa de Fidel" resulta tão bem: sente-se aqui um investimento (e um olhar) pessoal que é cada vez maisdifícil de encontrar hoje em dia. E, também por isso, é um filme que irá muito provavelmente ressoar muito com as gerações de pais que viveram o 25 de Abril e de filhos que cresceram nesses "verões quentes". Uma belíssima surpresa.