Europa ano zero
E, contudo, tomara nós que todos os filmes falhados fossem do calibre de "O Bom Alemão", adaptação deum romance de Joseph Kanon que usa o formato do filme negro e o ambiente da Berlim do pós-II Guerrapara sondar os temas da culpabilidade e da inocência, do passado e da memória, atirando umcorrespondente de guerra para o meio de um turbilhão de acontecimentos onde nada é o que parece e onde os bons não são necessariamente bons. É difícil(impossível) olhar para "O Bom Alemão" e não ver aqui uma parábola da intervenção americana no Iraque - rodada a preto e branco e construída como um cruzamento de "Casablanca" e "Chinatown" escrito pelo cinismo de Billy Wilder, e filmado como um filme de estúdio dos anos 50.
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E, contudo, tomara nós que todos os filmes falhados fossem do calibre de "O Bom Alemão", adaptação deum romance de Joseph Kanon que usa o formato do filme negro e o ambiente da Berlim do pós-II Guerrapara sondar os temas da culpabilidade e da inocência, do passado e da memória, atirando umcorrespondente de guerra para o meio de um turbilhão de acontecimentos onde nada é o que parece e onde os bons não são necessariamente bons. É difícil(impossível) olhar para "O Bom Alemão" e não ver aqui uma parábola da intervenção americana no Iraque - rodada a preto e branco e construída como um cruzamento de "Casablanca" e "Chinatown" escrito pelo cinismo de Billy Wilder, e filmado como um filme de estúdio dos anos 50.
Há uma mulher fatal, Lena Brandt (Blanchett a querer evocar Marlene), berlinense que caiu na perdiçãoquando a guerra lhe levou o marido, matemático pacato promovido a oficial das temidas SS. Jake Geismar (Clooney) conheceu-a antes da guerra, quando era correspondente em Berlim, e regressa neste Julho de 1945 para cobrir a conferência de paz que reúne Estaline, Churchill e Roosevelt, mas na verdade parabuscar a mulher que amou. Mas a guerra mudou tudo, e todas as personagens têm de viver com o peso da escolha que fizeram: só o repórter, herói nominal cujo suposto faro investigativo consegue a proezade compreender erradamente tudo o que se está a passar, continua magnificamente alheado dasrepercussões da situação em que se deixou cair.
Numa Berlim em curso de partição entre os aliados, americanos e russos não acreditam que o marido de Lena esteja morto e disputam-se entre si para o alcançarem primeiro, se ele estiver vivo; não fosse Tobey Maguire, o soldadinho americano fura-vidas,especulador do mercado negro, que serve de chulo a Lena e motorista a Jake, meter-se no meio e o caso ficaria no segredo dos deuses. Jake é um cínico romântico que ainda acredita num mundo melhor, mas todos os que o rodeiam não têm ilusões, todos têm um segredo a esconder, todos têm um ângulo para manipular os outros. A começar por Lena.
"O Bom Alemão" é uma visão de conjunto do ponto zero do mundo contemporâneo, sugerindo com inteligência que a conferência de Potsdam - espécie de Tratado deTordesilhas do mundo ocidental pós-guerra - foi a manifestação prática de um espírito de sobrevivência calculista que varreu o mundo durante a guerra, arevelação mascarada da política como a arte de sobreviver com elegância às convulsões do mundo.Alguns transportarão sempre a culpa de uma inocência, de uma ingenuidade que foram obrigados aperder, mas outros continuarão sempre a ser idealistas capazes de tudo em nome de uma causa, pormais errada que isso seja.
Enquanto filme de tese, é apaixonante, funcionando dentro da inteligência estética subversiva queSoderbergh adora praticar: tudo evoca a produção corrente hollywoodiana dos anos 40 e 50, desde a rodagem em estúdio aos enquadramentos, "raccords" etransições, só que com alusões sexuais e uma crueza de diálogos que não seria possível naquela década. Subversivo, sim, mas não pós-moderno - Soderbergh já fez pós-moderno, o que lhe interessa agora é ser apenas moderno, que o mesmo é dizer, regressar ao clássico com sinceridade e sem afectação.
Paradoxalmente, contudo, é esse regresso ao passado que mina "O Bom Alemão" e o transforma de objecto de tese em filme falhado: Soderbergh deslumbrou-se de tal modo com o estilo que emula que tudo o resto, dos actores à construção da narrativa, parece estaraqui para justificar a forma, convertendo o filme num objecto frio, morto, estéril, demonstração devirtuosismo estético que negligencia a emoção subjacente à narrativa, restringe a gama dos actores para se limitarem a marionetas estilizadas,prisioneiros de arquétipos tipificados. Tudo tanto mais irritante quanto não se pode acusar o elencoreunido de ser fraquinho e quanto o filme é mais um "tour de force" de Soderbergh, outra vez realizador, director de fotografia e montador.
E, contudo... Quantos realizadores se conseguem manter actuantes, curiosos, dispostos a experimentarao fim de duas dezenas de filmes? É verdade, sim, é um filme falhado - e, contudo, como é magnífico queSoderbergh tenha corrido o risco e o tenha feito.