Neon Bible

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Nos anos 90, quando se dizia que o rock tinha sucumbido, falava-se do espírito, de um certo imaginário de rebelião que sofrera problemas da erosão. Os conteúdos repetiam-se; a forma abafava o conteúdo; o rock divorciava-se da vida, era apenas espectáculo. O rock necessitava, outra vez, de transcendência, de fé, de nos fazer acreditar nos seus valores. Não através do regresso romantizado a uma espécie de terra perdida onde se escondem valores como verdade e autenticidade – que nunca passaram de mitos –, mas através da consciência do seu tempo e lugar, interagindo com o passado de forma natural e espontânea. É verdade que nos últimos anos – dos Animal Collective a Devendra Banhart – outros coleccionaram os mesmos valores mas sem o impacto global dos canadianos e sem o ardor, paixão, desmesurada paixão. Sem a mesma urgência em comunicar emoções complexas de forma tão simples. "Neon Bible" é fabuloso. Sofrerá, inevitavelmente, quando comparado com "Funeral". Não poderá criar o mesmo impacto no ouvinte. Mas em tudo o mais é-lhe superior. Os arranjos de Owen Palett (Final Fantasy) são grandiosos. Cada canção alberga texturas e tempos rítmicos diferentes, num jogo dinâmico de camadas em sobreposição. Cada instante parece ainda mais abrasivo que o anterior e a voz de Win Butler é toda ela ardor, impelida pela determinação contagiante do colectivo. O som é rasgado, reconhecemos algumas formas (Pixies, Bruce Springsteen, Roy Orbinson), mas é ligeiramente adulterado a partir do interior. Música diabolicamente eufórica, esta, espécie de cerimonial sem amarras. Mas tudo isto faz sentido porque está ao serviço de canções prodigiosas. Canções sobre o apocalipse, a fé, o medo. As canções de "Funeral" pareciam procurar um certo conforto perante a morte. "Neon Bible" nem isso. A família ou a religião não são refúgio seguro. "I'm living in an age that calls darkness light", canta Win Butler em "My body is a cage". E, no entanto, esta música é um sopro de júbilo. Aceita a desordem. Supera-a. Acredita na transcendência. Liberta-se de todos os cinismos quotidianos. Há tanto tempo que o rock não tinha nada assim.

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Nos anos 90, quando se dizia que o rock tinha sucumbido, falava-se do espírito, de um certo imaginário de rebelião que sofrera problemas da erosão. Os conteúdos repetiam-se; a forma abafava o conteúdo; o rock divorciava-se da vida, era apenas espectáculo. O rock necessitava, outra vez, de transcendência, de fé, de nos fazer acreditar nos seus valores. Não através do regresso romantizado a uma espécie de terra perdida onde se escondem valores como verdade e autenticidade – que nunca passaram de mitos –, mas através da consciência do seu tempo e lugar, interagindo com o passado de forma natural e espontânea. É verdade que nos últimos anos – dos Animal Collective a Devendra Banhart – outros coleccionaram os mesmos valores mas sem o impacto global dos canadianos e sem o ardor, paixão, desmesurada paixão. Sem a mesma urgência em comunicar emoções complexas de forma tão simples. "Neon Bible" é fabuloso. Sofrerá, inevitavelmente, quando comparado com "Funeral". Não poderá criar o mesmo impacto no ouvinte. Mas em tudo o mais é-lhe superior. Os arranjos de Owen Palett (Final Fantasy) são grandiosos. Cada canção alberga texturas e tempos rítmicos diferentes, num jogo dinâmico de camadas em sobreposição. Cada instante parece ainda mais abrasivo que o anterior e a voz de Win Butler é toda ela ardor, impelida pela determinação contagiante do colectivo. O som é rasgado, reconhecemos algumas formas (Pixies, Bruce Springsteen, Roy Orbinson), mas é ligeiramente adulterado a partir do interior. Música diabolicamente eufórica, esta, espécie de cerimonial sem amarras. Mas tudo isto faz sentido porque está ao serviço de canções prodigiosas. Canções sobre o apocalipse, a fé, o medo. As canções de "Funeral" pareciam procurar um certo conforto perante a morte. "Neon Bible" nem isso. A família ou a religião não são refúgio seguro. "I'm living in an age that calls darkness light", canta Win Butler em "My body is a cage". E, no entanto, esta música é um sopro de júbilo. Aceita a desordem. Supera-a. Acredita na transcendência. Liberta-se de todos os cinismos quotidianos. Há tanto tempo que o rock não tinha nada assim.