Nine Inch Nails: o clímax da memória
Foi uma estreia tardia. Como tudo o que é aguardado em excesso, o prazer concorre com o risco. Por um lado, é puro prazer ver chegada a hora de assistir ao concerto de uma banda que anda a marcar vidas desde o final dos anos 80. Por outro, é puro risco saber que as expectativas estão tão aguçadas que é difícil corresponder-lhes – quanto mais ultrapassá-las. No primeiro dos três concertos que os Nine Inch Nails ofereceram a Portugal, o risco perdeu para o prazer.
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Foi uma estreia tardia. Como tudo o que é aguardado em excesso, o prazer concorre com o risco. Por um lado, é puro prazer ver chegada a hora de assistir ao concerto de uma banda que anda a marcar vidas desde o final dos anos 80. Por outro, é puro risco saber que as expectativas estão tão aguçadas que é difícil corresponder-lhes – quanto mais ultrapassá-las. No primeiro dos três concertos que os Nine Inch Nails ofereceram a Portugal, o risco perdeu para o prazer.
O holofote esteve sempre em Trent Reznor – o visionário, o multifacetado, o genial (riscar o que não interessa?) mentor do colectivo norte-americano –, que contrariou a má forma física como uma boa forma em palco de fazer inveja à maior parte das bandas que hoje reclamam a sua herança.
O público não escondeu o desejo de saciar a sede e a banda não teve pudor em responder com voracidade. Ficou desde logo bem clara a intenção para a noite: uma sucessão subtil de crescendos, em direcção a um estado de pré-explosão que encontra o prazer exactamente nessa vertigem.
Inspirados na escuridãoA máquina começou a carburar ao som de "Mr self destruct", primeira paragem em "The Downward Spiral" (1994), álbum que viria a exibir-se várias vezes ao longo de um alinhamento que privilegiou mais a memória do que o passado recente (já agora, fica a nota para o futuro: o novo álbum, "Year Zero", é editado a 17 de Abril).
Neste momento, o cenário era de um estado de quase-transe colectivo. Portugal nunca tinha visto os Nine Inch Nails. E, por esta altura, pouco mais se conseguia ver para lá as silhuetas dos corpos e dos instrumentos recortadas pelas luzes. Mas as raízes dos cabelos já acusavam as cargas demolidoras que os ouvidos iam reconhecendo e absorvendo de um passado não tão distante. Demolidoras, sim. Mas muito melódicas também.
Os Nine Inch Nails, cada vez mais visíveis, continuaram a rebobinar. Tínhamos passado 1992, via "Last” (do álbum "Broken"), e estávamos em pleno 1989, com "Terrible lie" (do seminal "Pretty Hate Machine"), quando faltou a luz. Reznor quebrou o gelo: "Não seria a primeira data da digressão se alguma coisa não corresse mal". Podia faltar a luz, mas não ia faltar inspiração. Nem iam público e banda desperdiçar mais um segundo deste aguardado encontro.
O Coliseu saiu da escuridão tão depressa quanto mergulhou. "Acendam-se as luzes da sala", ordenou Reznor. A omnipresente bola gigante do tecto, rodeada de outros doze globos, obedeceu, fazendo descer uma coluna de luz sobre a plateia – e sobre os movimentos de convulsão de um enorme "moshpit". A banda estava às escuras. O público era a estrela. E assim, um momento que podia matar a noite acabou por proporcionar aquele "quê" de único, aquela sensação de ter estado num local onde algo de irrepetível estava a acontecer.
Solucionado o problema com o alarme anti-fumo (explicação adiantada pelo próprio Reznor para a falha técnica), já não foi preciso imaginar o jogo de luzes que potenciava cada descarga desta máquina de sensações. Viveu-se a cadência ímpar de "March of the pigs", a frustração de "Something I can never have" (um dos momentos mais belos da noite), os limites testados por "The line begins to blur", a famosa sofreguidão de "Closer", a vertigem de "Hurt", o orgulho de "Head like a hole" ("curvem-se perante aquele que servem/ vão receber o que merecem"). O concerto acabava aqui, pouco mais de hora e meia depois do primeiro acorde. Suficiente para saciar os fãs? Claramente, não. Nunca seria. Mas, tudo somado, Portugal terá direito a pelo menos 4h30 ou 5 horas de Nine Inch Nails (há repetição hoje e amanhã, também no Coliseu). Um privilégio que compensa uma espera longa de mais.