Woody allen de saias
Sondra Pronsky é estudante de jornalismo de Brooklyn a passar férias em casa da família de uma amiga bem na vida em Londres. Fala que se desunha, gesticula muito, usa óculos e tem uma opinião sobre tudo ou uma história para contar, mesmo que ninguém lha tenha pedido. É assim que Scarlett Johansson entra em "Scoop", o novo filme de Woody Allen: como um "Woody Allen de saias", com os tiques, os maneirismos, o débito acelerado e aparentemente imparável do actor-realizador. Não é Allen - obviamente; até porque mais à frente o próprio realizador fará a sua aparição no elenco do filme -, mas podia ser, porque tudo em Sondra Pronsky grita "Woody Allen". Mas essa é uma das mais fascinantes questões que "Scoop" levanta: o que esperamos de Woody Allen, ao fim de 36 realizações ao ritmo impassivelmente metronómico de uma por ano desde 1969? Esperamos apenas uma sensação de reconhecimento, de mais do mesmo - e nesse caso não se percebe porque é que resmungamos quando os filmes são, de facto, mais do mesmo - ou queremos que ele nos surpreenda, que nos traga qualquer coisa de novo - e nesse caso não temos nada que resmungar quando ele nos surpreende?Há um ano, "Match Point" (2005) surpreendia por ser um Allen "à antiga", como há muito ele não fazia - o seu melhor filme em dez anos e, claramente, um dos melhores da sua carreira, merecendo a rendição de uma critica e de um público há demasiado tempo demasiado cépticos. "Scoop", por isso, levou com os holofotes bem assestados em cima - e a unanimidade é que não é outro "Match Point". E isso é bom ou é mau?
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Sondra Pronsky é estudante de jornalismo de Brooklyn a passar férias em casa da família de uma amiga bem na vida em Londres. Fala que se desunha, gesticula muito, usa óculos e tem uma opinião sobre tudo ou uma história para contar, mesmo que ninguém lha tenha pedido. É assim que Scarlett Johansson entra em "Scoop", o novo filme de Woody Allen: como um "Woody Allen de saias", com os tiques, os maneirismos, o débito acelerado e aparentemente imparável do actor-realizador. Não é Allen - obviamente; até porque mais à frente o próprio realizador fará a sua aparição no elenco do filme -, mas podia ser, porque tudo em Sondra Pronsky grita "Woody Allen". Mas essa é uma das mais fascinantes questões que "Scoop" levanta: o que esperamos de Woody Allen, ao fim de 36 realizações ao ritmo impassivelmente metronómico de uma por ano desde 1969? Esperamos apenas uma sensação de reconhecimento, de mais do mesmo - e nesse caso não se percebe porque é que resmungamos quando os filmes são, de facto, mais do mesmo - ou queremos que ele nos surpreenda, que nos traga qualquer coisa de novo - e nesse caso não temos nada que resmungar quando ele nos surpreende?Há um ano, "Match Point" (2005) surpreendia por ser um Allen "à antiga", como há muito ele não fazia - o seu melhor filme em dez anos e, claramente, um dos melhores da sua carreira, merecendo a rendição de uma critica e de um público há demasiado tempo demasiado cépticos. "Scoop", por isso, levou com os holofotes bem assestados em cima - e a unanimidade é que não é outro "Match Point". E isso é bom ou é mau?
Pós-miaSondra Pronsky, então, a nova-iorquina transplantada que se faz passar por herdeira rica de Palm Beach para descobrir se um par do reino é ou não um assassino em série, no que é uma comédia policial fortemente inspirada pelas "screwball comedies" dos anos 30 - ou, se quisermos, uma variação mais inspirada sobre os motivos cómicos de "A Maldição do Escorpião de Jade" (2001) e de "O Misterioso Assassínio em Manhattan" (1993). Scarlett Johansson transfigura-se da mulher fatal de "Match Point" na detective improvisada de "Scoop" naquela que é a primeira actriz principal repetente num filme do realizador desde a separação de Mia Farrow há 15 anos - saber que Johansson seguira de um para outro filme deu azo (sobretudo face ao deslumbre com "Match Point") a esperar que se pudesse abrir novo ciclo na carreira de Allen. (Afinal não, Scarlett não está no próximo, "Cassandra"s Dream", novamente rodado em Inglaterra, com Colin Farrell e Ewan McGregor...).
Será que uma mulher faz falta ao cinema de Allen? Os factos: depois de um período embriónico, Allen "fixou" como parceira (e companheira na vida real) Diane Keaton e com ela assinou uma sequência de filmes que o transformaram de comediante aclamado no universo da "stand-up comedy" num dos autores mais emblemáticos do cinema americano da década de 1970, com "Annie Hall" (1977) e "Manhattan" (1979) à cabeça. Separado de Keaton, enfrentou os primeiros questionamentos da crítica com "Recordações" (1980) e a desintegração da United Artists, o seu estúdio de sempre; mas no filme seguinte, "Uma Comédia Sexual numa Noite de Verão" (1982), Allen introduziu a sua nova musa, Mia Farrow, e instalou-se de armas e bagagens na Orion, formada por muitos dos executivos com quem trabalhara na United Artists.
Seguiu-se uma década de fervilhante produção em que explorou o território de autor que demarcara nos anos 70, culminando com a separação de Farrow nas circunstâncias de todos conhecidas em 1993 e o "encerramento" da Orion, levando o realizador a tornar-se num "agente livre" navegando entre estúdios e independentes (Columbia, Miramax, Sony Classics, Dreamworks, New Line - "Match Point" e "Scoop" vêm com a chancela inglesa da BBC Films). O imediato pós-Mia trouxe uma trilogia ao nível do seu melhor trabalho ("Balas Sobre a Broadway", 1994; "Poderosa Afrodite", 1995; e "Toda a Gente Diz Que Te Amo", 1996). E depois, a partir de "As Faces de Harry" (1997), algo se desmoronou. Sim, parece que uma mulher faz falta ao cinema de Allen. Ou então...
Por procuraçãoVoltemos a Sondra Pronsky (tenham paciência, vão ver que isto anda tudo ligado), então, encarnação de um possível e arquetípico "Woody de saias" que Diane Keaton claramente não era e que Mia Farrow nunca deixou de ser. As duas musas recorrentes do cinema (e da vida) de Allen existiram sempre nos seus filmes (mesmo naqueles que apenas realizou) por relação ao arquétipo do intelectual burguês nova-iorquino que Allen costumava reservar para si próprio nos seus filmes: Keaton por oposição, Farrow por simpatia. Ambas complementavam-no, em pontos opostos de um mesmo espectro - mas, enquanto Allen só está ausente de um dos cinco filmes em que dirigiu Keaton ("Intimidade", 1978), sublinhando essa complementaridade de opostos, retira-se do écrã em cinco dos treze em que dirigiu Farrow, como se a sua presença fosse substituível pela sua "outra face".
Ausente esse "yin" do "yang" de Allen, ausente a "cara-metade" feminina que equilibrava a sua "persona" fílmica, o realizador começou a experimentar encenar-se por procuração, entregando o papel que habitualmente se reservava a outros actores. O dramaturgo de John Cusack em "Balas Sobre a Broadway", o jornalista de Kenneth Branagh em "Celebridades" (1998), o escritor de Jason Biggs em "A Vida e Tudo o Mais" (2003), o actor de Will Ferrell em "Melinda e Melinda" (2004) são outras tantas encarnações Allenianas "in absentio". Com o adicional de todos estes actores adoptarem os tais tiques, os tais maneirismos que já se tornaram marca registada - o caso mais evidente é mesmo Branagh em "Celebridades", mais Allen do que Allen ele próprio - sem que isso corresponda forçosamente a uma solicitação expressa do realizador para fazerem "dele". Antes uma espécie de transfiguração quase osmótica exigida pela personagem, pelo seu ritmo, pela sua postura - e, claro, pelo muito de si que Allen coloca sempre nos seus filmes, mesmo que não se possa falar de autobiografia pura e dura (mas é impossível não ver "Maridos e Mulheres", 1993, último filme com Farrow, rodado e estreado em plena crise de separação, sem perceber que as alusões estão lá...).
É por isso que "As Faces de Harry" é a charneira, espelho quebrado onde a vida e a arte se dissolvem na história de Harry Block, o escritor imaturo, arrogante e hedonista que, a caminho de uma homenagem académica, revisita a sua vida e percebe que a sua tendência para usar a vida real como base dos seus livros alienou todos aqueles que conheceu e o condenou à solidão. Provavelmente, o existencialismo autoral de "As Faces de Harry", revendo as premissas de "Recordações" à luz da estrutura dos "Morangos Silvestres" (1957) do seu ídolo Bergman, faria muito mais sentido se Allen se tivesse mantido apenas atrás da câmara, como era sua intenção original. Mas Elliot Gould saltou fora, e Albert Brooks, abordado para o substituir, recusou dizendo que era idiota não ser o próprio Allen a interpretar Harry. E, depois, não foi possível voltar atrás.
As faces de woodyÉ como se a destruição metódica que Harry Block - alcoólico, drogado, desbocado, egoísta, convencido - faz da "persona" Alleniana, que leva ao limite do absurdo, fosse um ponto final após o qual dificilmente ele poderia voltar a interpretá-la (daí os "alter egos" - Branagh, Biggs, Ferrell, agora Johansson) ou apenas a pudesse reassumir sob uma espessa camada de irrisão. É o que acontece em "Hollywood Ending" (2002), que completa a desconstrução de "As Faces de Harry" ao encenar a crise do autor aclamado à beira de um ataque de nervos, num movimento de "mise-en-abîme" burlesca da sua imagem (lamentavelmente não acompanhado pela inspiração de uma piada auto-referencial que se esgota na sua própria enunciação). Nos outros filmes que interpretou e realizou no pós-"Harry", no entanto, Allen parte noutra direcção: reduz-se ao mero papel de intérprete de uma personagem que já não é apenas uma filtragem de si próprio.
O ladrãozeco desastrado de "Vigaristas de Bairro" (2000), o detective machista de "A Maldição do Escorpião de Jade", o professor paranóico de "A Vida e Tudo o Mais", o prestidigitador de segunda linha de "Scoop" são verdadeiramente personagens. E, se calhar, é mesmo esse o problema: não estamos a ver um actor a representar uma personagem, estamos a ver Woody Allen, com os tiques, com os maneirismos, com a dicção que identificamos inconfundivelmente consigo, a querer ser outra personagem que não aquela que criou para si próprio e que nos habituámos a ver-lhe. Como se tivesse cristalizado de tal maneira a sua "persona" de actor que já não lhe consegue escapar, mas não deseje outra coisa. Ou como se nós, espectadores, já não fôssemos capazes de olhar para Allen-actor sem o lastro que ele arrasta (e será possível?).
E a ironia é que, tanto em "A Vida e Tudo o Mais" como no novo "Scoop", essa tentativa de escapar à sua imagem coexiste com as tais encarnações "in absentio" sob os traços de Jason Biggs e Scarlett Johansson. É como se Allen nos estivesse a querer dizer: "estou cansado de ser quem sou nos filmes, deixem-me ser outras pessoas". Não por acaso, estamos sempre a falar de uma fase pós- "As Faces de Harry" - que o mesmo é dizer, o ponto em que o realizador quebrou definitivamente a relação entre a sua pessoa e a sua personagem, a partir do qual o seu cinema perdeu a gravidade e a densidade (excluindo a "ressurreição" de "Match Point") para assumir uma vertente mais lúdica, mais próxima dos seus primeiros filmes, mais burlescos e menos sérios (não é descabido pensar num regresso aos primórdios de "O Inimigo Público nº 1", 1969, ou "O Herói do Ano 2000", 1973), mas com uma leveza assinalável que os torna em alguns dos seus filmes mais descomprometidos e menos neuróticos. E se tudo isto - "Scoop" inclusive, que retoma o universo do ilusionismo barato que se adivinhava em "O Agente da Broadway" (1984) e servia de pano de fundo à "Maldição do Escorpião de Jade" - não passasse de Allen, hoje com 72 anos, a usufruir enquanto pode do estatuto de "clássico" que a sua carreira lhe permite? Afinal, é um dos raros autores consagrados do cinema americano que continua em actividade regular sem ter de ceder um milímetro na sua postura. Quantos como ele se podem gabar do mesmo?
E voltamos ao ponto de partida: somos nós que continuamos a esperar muito dele, ou foi ele que deixou de estar interessado em corresponder às expectativas? Ou, coisa pior ainda, as duas coisas ao mesmo tempo? "Scoop", é certo, não é outro "Match Point". E isso é bom ou é mau?