Aqui há fantasmas
"Scoop" vem confirmar tal tendência, sublinhando, inclusive, o interesse por uma espécie de "whodunit", "quem matou?", algures entre as irónicas memórias vitorianas de Jack o Estripador e uma elegante exploração de interiores e de paisagens, à la Agatha Christie.
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"Scoop" vem confirmar tal tendência, sublinhando, inclusive, o interesse por uma espécie de "whodunit", "quem matou?", algures entre as irónicas memórias vitorianas de Jack o Estripador e uma elegante exploração de interiores e de paisagens, à la Agatha Christie.
E, no entanto, esta estranha história de adivinhações e de passes de mágica, constitui, em simultâneo, uma síntese das temáticas allenianas: desde o onirismo controlado das sequências em que o barqueiro da morte, ecoando Ingmar Bergman, uma das grandes referências do realizador novaiorquino, conduz as suas vítimas, até ao modo como se trabalha o irrisório dos diálogos, insistindo na repetição de "gags", sobretudo verbais, com algumas das réplicas máximas da obra do cineasta.
A história é muito simples, quase esquemática: um jornalista (Ian McShane) morre e no caminho para o outro lado do rio do esquecimento encontra a secretária de um aristocrata (Hugh Jackman) que lhe revela suspeitar ter sido assassinada por este, por o ter conectado com um caso de assassínios em massa de prostitutas jovens, morenas e de cabelo curto. Desejando conseguir o seu último furo, o jornalista "aparece" a uma jovem aspirante a jornalista (Scarlett Johansson, perfeita na figura de uma adolescente americana deslumbrada), durante a sessão de um mágico cabotino (Woody Allen, ele-próprio, claro), que faz desaparecer pessoas e acaba por confrontar-se com o movimento contrário, a reencarnação dos mortos para informar sobre os vivos.
Depois, tudo se precipita, sem quaisquer novidades nem surpresas, requintando apenas num brilhante exercício de estilo, misturando citações e pulverizando a hipótese de preponderância das regras de género: "thriller" cómico, comédia de enganos e variação absurda sobre as séries televisivas britânicas, o filme voga de peripécia em peripécia com a segurança de quem conhece as tradições que manipula e se exibe, enquanto vulnerável personagem e enquanto supremo manipulador.
Presdigitação total. Do clássico cinema hollywoodiano, recolhe Woody Allen o motivo do filme de fantasmas, que permite o regresso à vida para alterar a acção. Do suspense "hitchcockiano" aproveita, subvertendo-o, o "timing", com citação explícita de "Difamação"/"Notorious" no uso do truque da cave, com as garrafas de vinho à vista.
Há ainda, por outro lado, uma tangente expressa a um dos últimos filmes do mestre inglês, "Frenzy" - também ele uma enésima variação sobre o mito de Jack O Estripador -, que aqui se esvazia do tom sádico e excessivo para assumir um gentil contorno de comédia sentimental: quando Scarlett Johansson se apaixona pelo sedutor aristocrata que pretende desmascarar, expõe o jogo e "imola-se", em perigoso arremedo de melodrama. E o melodrama "invade" o filme, também, por via da citação cinéfila: a sequência que parece resolver o ajuste de contas com a traição e libertar o sedutor assassino da sua "perseguidora" cita a famosa cena do lago de "Um Lugar ao Sol" de George Stevens, por sua vez um "remake" de "Uma Tragédia Americana" de Josef von Sternberg, adaptado do romance homónimo de Dreiser, a ecoar um dos momentos capitais da "Aurora" de Murnau.
Mas, e neste jogo infinito de "trompe l"oeil" consiste a genialidade de Woody Allen, nada é o que parece: "Scoop" explora pistas para melhor se superar em presdigitação total. O filme resolve o "thriller" pela inversão do truque usado para a aproximação do par - a indefesa heroína que não sabia nadar, na capital sequência inicial da piscina, revela-se como campeã de natação - e o brilhante exercício de estilo cumpre-se no perfeito regresso à circularidade: a personagem de Allen morre no desastre e embarca na barca de Caronte, repetindo à exaustão os seus estafados truques de cartas, para os seus novos companheiros de viagem.
O que distingue "Scoop" de anteriores pequenos "thrillers", como "Manhattan Murder Mystery"? Desde logo, a amplitude da intervenção na sua "persona" de homenzinho ridículo e insignificante. Tendo já sido notado (e bem) nestas páginas a transferência de alguns dos atributos e tiques de Woody Allen para outra personagem - no caso, a de Johansson -, a presença de Allen em cena revela-se fulcral: não só comanda a acção, como desvela a forma de descodificar o simulacro. Tudo, em "Scoop", reformula o "déjà vu" numa estratégia de distanciamento de infinitas repercussões. Auto-retrato com atributos, síntese paródica do seu universo e falsa passagem de testemunho, o filme reafirma a indispensabilidade da sua inteligência crítica para se perpetuar enquanto mito de si próprio, em narcísica pose de autor.