Saddam Hussein: ascensão e queda de um ditador
Dizem os peritos que não foram os dotes oratórios nem o carisma que levaram Saddam ao poder absoluto.
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Dizem os peritos que não foram os dotes oratórios nem o carisma que levaram Saddam ao poder absoluto.
Foi, antes, a sua ambição e a capacidade para ser impiedoso com os seus inimigos – e estes foram muitos ao longo dos anos, desde os curdos que mandou gasear no Norte do país, a alguns dos seus mais próximos colaboradores, e mesmo familiares, que mandou matar ou assassinou com as próprias mãos quando perdeu a confiança neles. E o que o manteve no poder – onde se revelou sempre um líder desconfiado, vivendo no medo constante de ser assassinado – foi a rede familiar e tribal de que se rodeou e que constitui até hoje o núcleo duro do seu regime.
A infânciaNasceu a 28 de Abril de 1937 em Ouija, uma aldeia de casas de tijolo, próxima de Tikrit, 170 quilómetros a Norte de Bagdad. Numa sociedade tribal como a iraquiana, é importante saber Saddam é sunita e que nasceu no clã al-Bejat, pertencente à tribo Albu Nasir. O seu pai, um camponês pobre, morreu pouco tempo antes do filho nascer, e a sua mãe, Subna al-Tulfah, voltou a casar-se com Ibrahim al-Hassan.
Saddam não se dava bem com o padrasto. A sua biografia oficial relata uma infância difícil, com Ibrahim a obrigá-lo a acordar de madrugada para ir tratar dos rebanhos. Ele queria estudar e – contrariando a família – um dia pôs-se a caminho da escola sozinho. Devido ao mau relacionamento com o padrasto, quando Saddam tinha dez anos, Subna decidiu enviá-lo para Bagdad para viver com o tio Khairallah Tulfa, oficial do Exército e militante antibritânico (o tio era também o futuro sogro de Saddam, que aos cinco anos já tinha sido prometido em casamento à sua prima Sajida).
A juventudeFoi aos 18 anos que Saddam se filiou no Partido Baas, aderindo aos seus ideais laicos e nacionalistas. Mas foi também nesse ano que viu rejeitada a sua candidatura à Academia Militar, por falta de habilitações. Os biógrafos apontam 1958 como a data do seu primeiro assassínio político – a vítima foi um militante comunista, morto em Tikrit com um tiro na cabeça. Terá sido esta acção – pela qual passou alguns meses na prisão – que chamou a atenção dos dirigentes do Baas para o jovem militante.
Saddam foi então incluído num comando de dez homens com a missão de assassinar o primeiro-ministro Abdel Karim Qassem (o general que em 58 derrubara a monarquia). O atentado falha, Saddam é ferido numa perna e foge, a pé e a cavalo, para a Síria, depois de ter retirado, ele próprio, a bala com uma faca. Durante os três anos seguintes, Saddam viveu em Damasco e no Cairo, onde estudou Direito. Foi a única altura da sua vida em que viveu no estrangeiro – mesmo depois de se ter tornado Presidente, as suas deslocações fora do país foram raras.
O terrorO regresso a Bagdad dá-se depois de o Baas ter, finalmente, conseguido derrubar Qassem, num golpe dirigido pelo coronel Ahmad Hassan al-Bakr, que era também seu tio. O cristão Michel Aflak, ideólogo do Baas, convida-o para a direcção do partido. Saddam é “investigador”, o que significa que é o responsável pelos interrogatórios. “Recorreu à tortura e, como qualquer um que faz essa actividade, eliminou fisicamente pessoas”, garante Said Aburish.
Segundo este especialista, Saddam acreditava na máxima iraquiana que diz “se matas um homem, mata também todos os que possam falar desse crime”. Nos anos 60 “executou ele próprio um bom número de opositores”, escreve Aburish num perfil do líder iraquiano publicado no “Nouvel Observateur”. “Quando chegou ao topo do poder, continuou. Matou o ministro da Saúde, com uma bala na cabeça, em pleno conselho de ministros”. Às vezes tinha momentos de súbita compaixão. Um dia, quando fazia a ronda das prisões, encontrou um homem com um ar miserável. Deu ordens para que lhe dessem roupas decentes e um pouco de dinheiro e o libertassem. Só mais tarde se soube a razão: muitos anos antes, este homem tinha por hábito dar uma gorjeta ao miúdo que lhe vendia cigarros. O miúdo era Saddam.
O poderPela mão de Al-Bakr foi subindo a escada do poder. Primeiro é vice-secretário-geral adjunto do Conselho do Comando da Revolução, depois vice-presidente, depois comandante do Exército. Em 1979, afasta Al-Bakr do poder e, com 42 anos, chega à chefia do Estado.
Ao longo dos anos foi-se afastando da ideologia do Partido Baas – e de toda e qualquer ideologia que não fosse o fascínio pelo poder. Criou um culto da personalidade espalhando a sua imagem por todo o país, vestido de civil, de militar, de camponês, de devoto muçulmano, com o traje do seu clã, com toga de juiz, a rezar, a discursar, a disparar. É omnipresente e todo-poderoso. Mas não confiava em praticamente ninguém. Dizia-se que apenas os filhos e um ou dois fiéis sabiam sempre onde ele se encontrava.
A base do seu poder tinha deixado há muito de ser o partido. Saddam rodeou-se de membros da sua tribo e da sua família. Mas o terror que inspirava mesmo aos que lhe eram mais próximos fazia com que estes apenas lhe dissessem o que ele queria ouvir. Uma intervenção inesperada, uma iniciativa podiam custar a vida ao seu autor. Por isso, todos ouviam Saddam em silêncio reverencial. “Só os muito experientes – ou muito loucos – davam uma opinião honesta. Muitos dos que o fizeram foram mortos em 24 horas”, avança o “Guardian”.
A famíliaSaddam casou com a prima, a quem tinha sido prometido aos cinco anos. De Sajira teve os seus cinco filhos: Udai, o mais velho, violento e instável, habituado a assassinar a sangue frio os que o contrariam, Qusai, que se tornou o braço direito do pai, muito mais discreto, mas também mais frio e cerebral que o irmão, e as três raparigas, Raghad, Rana e Hala. As duas mais velhas caíram em desgraça quando abandonaram o país junto com os seus maridos, em 1995. A deserção de Hussein Kamel e de Saddam Kamel Hassan al-Majid (o fundador da Guarda Republicana) foi um duro golpe para Saddam. O Presidente garantiu-lhes que se regressassem ao país não seriam alvo de nenhuma vingança. Os dois genros deixaram Amã, onde se tinham refugiado, e voltaram a Bagdad. Quarenta e oito horas depois, as filhas de Saddam tinham-se divorciado dos maridos e pouco tempo depois estes eram mortos.
O medo da morteA ideia de que queriam matá-lo tornou-se obsessiva. Saddam nunca dormia no mesmo sítio, e evitava passar as noites nos seus palácios. No entanto, conta-se que preparava tudo em cada um deles – mesa posta para as várias refeições, camas prontas – para despistar os seus inimigos. Levantava-se de madrugada, não dormia mais do que quatro ou cinco horas por noite.
Quando acordava ia nadar, para tentar melhorar os problemas provocados por uma hérnia discal. Sofria de dores nas costas, que nos últimos anos o obrigavam a andar um pouco curvado. Mas o pavor de que aos 65 anos o vejam como um velho, ou como um líder enfraquecido, faziam com que tomasse precauções para não ser fotografado nem filmado com as costas curvadas. É por isso também que continuava a pintar o cabelo de preto e não usava óculos em público, exceptuando no tribunal, quando já estava a ser julgado por crimes contra a humanidade.
Tinha vários sósias, completamente iguais a ele. Espalhava-os por vários sítios, para que ninguém soubesse onde estava o verdadeiro Saddam. Estilhaçava a sua imagem, num jogo de espelhos.
A guerra com o IrãoEm 1979, ano em que Saddam assumiu a liderança absoluta, o ayatollah Khomeini derrubou o Xá do Irão. Para travar uma revolução semelhante em Bagdad, Saddam mandou executar Mohammed Bakr al-Sadr, chefe do partido xiita al-Dawa, ordenou a deportação de 30 mil iraquianos de origem iraniana e invadiu a vizinha República Islâmica. As monarquias árabes do Golfo ofereceram a Saddam milhares de milhões de dólares e os EUA forneceram dados de satélite que obrigaram Khomeini a aceitar um cessar-fogo. Balanço final: o Iraque acabou a guerra com 200 mil mortos, 400 mil feridos e 70 mil prisioneiros. Saddam ficou com dívidas no valor de 25.700 milhões de dólares.
Em 1988, quando matou 5000 curdos em Halabja com armas químicas adquiridas aos EUA, Saddam ainda era um protegido do Ocidente. A partir de 1989, porém, o Kuwait começou a exercer pressões sobre o Iraque para que a sua soberania fosse reconhecida. Em meados de Julho de 1990, Saddam tentou primeiro apoderar-se de duas ilhas do emirado, Bubiyan e Warba, assim como do campo petrolífero de Rumailah. No último minuto, optou por uma invasão total. Foi um erro terrível.
Em 1991, a URSS juntou-se aos EUA numa vasta coligação. O Iraque que ambicionava ser uma superpotência regional ficou reduzido a uma servidão semicolonial.
Depois de Saddam capitular, os EUA ainda lhe deixaram margem de manobra. Esmagou revoltas de curdos no Norte e de xiitas no Sul. Mandou assassinar os genros, que haviam desertado para a Jordânia expondo alguns dos seus segredos, como o desenvolvimento de um programa nuclear. Dificultou as inspecções dos peritos de desarmamento da ONU. Venceu até um referendo com "100 por cento" dos votos. Em 20 de Março de 2003, sob o pretexto de que Saddam tinha armas de destruição maciça e apoiava a Al-Qaeda, americanos e britânicos iniciaram outra guerra para derrubar o tirano.
Em 22 de Julho, já com um novo Conselho de Governo em Bagdad, os filhos de Saddam, Udai e Qusai, foram mortos. Alguns fiéis do ex-Presidente continuaram a resistir, com atentados visando vários alvos. Em Dezembro de 2003, Saddam foi finalmente capturado, num esconderijo subterrâneo, sem resistir. Depois disso, veio o julgamento. Uma justiça em que respondia pelo primeiro nome, sem títulos nem cargos, algo ao qual o ditador não estava habituado. No dia 5 de Novembro de 2006, Saddam foi condenado à pena de morte pelo massacre de 146 xiitas, na década de 80. Hoje de madrugada, faltou a Saddam um sósia, quando o laço se apertou em redor do seu pescoço, no adeus ao homem que comandou o Iraque a ferro e fogo.