A confusão dos géneros
O que fazer com o mais recente opus do cineasta inglês Michael Winterbottom, que os acasos cruéis da distribuição nacional lançam para as salas apenas uma semana depois do francamente mais conseguido "Voo 93", do conterrâneo Paul Greengrass (e na mesma semana do francamente mais interessante "O Paraíso, Agora!")? Recebido com aplausos no Festival de Berlim deste ano, onde apesar de favorito ao Urso de Ouro teve de se contentar com o prémio de realização, "A Caminho de Guantánamo" é um filme abertamente político e interventivo, feito em pleno "zeitgeist" dos protestos sobre os maus tratos e abusos de poder revelados na prisão militar de alta segurança de Guantánamo, para onde o governo americano enviou como prisioneiros de guerra os suspeitos de terrorismo capturados desde o 11 de Setembro. Isso, contudo, não o torna forçosamente num grande filme - a arte raramente se dá bem com o serviço a uma causa - e, por muito que as nossas simpatias estejam com os "três de Tipton", três jovens muçulmanos ingleses que, de visita ao Afeganistão em plena invasão americana, são confundidos com integrantes da Al-Qaeda e aprisionados em Guantánamo durante dois anos antes de serem finalmente ilibados e libertados sem sequer um pedido de desculpas do governo americano, o filme de Winterbottom, co-dirigido com o montador Mat Whitecross, é pouco mais do que um panfleto. Não era forçoso que o fosse, embora não seja inesperado. "A Caminho de Guantánamo" insere-se na linhagem de anteriores casos verídicos filmados por Winterbottom para activar as boas consciências ocidentais, como "Bem-Vindos a Sarajevo" (1997) e "Neste Mundo" (2002, Urso de Ouro em Berlim), ambos rodados em tom de cinema-vérité e à maneira do "docudrama" televisivo britânico onde o realizador se formou. Mas a abordagem mais abertamente documental de "A Caminho de Guantánamo", intercalando a reconstituição da odisseia dos três jovens, feita com actores, com entrevistas contemporâneas aos verdadeiros protagonistas, está mais do lado da televisão do que do cinema (financiado pelo Channel Four, tem tudo de docudrama televisivo e quase nenhum fôlego cinematográfico) e desenha-se como um objecto híbrido que relança o debate sobre as fronteiras do documentário e da ficção que "Neste Mundo" já explorava. Tinha tudo para ser um comentário estimulante sobre a condição contemporânea do documentário, objecto "perdido" num limbo entre o registo de um momento histórico e a necessária transformação em narrativa/ficção que qualquer trabalho de manipulação das imagens registadas implica.
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O que fazer com o mais recente opus do cineasta inglês Michael Winterbottom, que os acasos cruéis da distribuição nacional lançam para as salas apenas uma semana depois do francamente mais conseguido "Voo 93", do conterrâneo Paul Greengrass (e na mesma semana do francamente mais interessante "O Paraíso, Agora!")? Recebido com aplausos no Festival de Berlim deste ano, onde apesar de favorito ao Urso de Ouro teve de se contentar com o prémio de realização, "A Caminho de Guantánamo" é um filme abertamente político e interventivo, feito em pleno "zeitgeist" dos protestos sobre os maus tratos e abusos de poder revelados na prisão militar de alta segurança de Guantánamo, para onde o governo americano enviou como prisioneiros de guerra os suspeitos de terrorismo capturados desde o 11 de Setembro. Isso, contudo, não o torna forçosamente num grande filme - a arte raramente se dá bem com o serviço a uma causa - e, por muito que as nossas simpatias estejam com os "três de Tipton", três jovens muçulmanos ingleses que, de visita ao Afeganistão em plena invasão americana, são confundidos com integrantes da Al-Qaeda e aprisionados em Guantánamo durante dois anos antes de serem finalmente ilibados e libertados sem sequer um pedido de desculpas do governo americano, o filme de Winterbottom, co-dirigido com o montador Mat Whitecross, é pouco mais do que um panfleto. Não era forçoso que o fosse, embora não seja inesperado. "A Caminho de Guantánamo" insere-se na linhagem de anteriores casos verídicos filmados por Winterbottom para activar as boas consciências ocidentais, como "Bem-Vindos a Sarajevo" (1997) e "Neste Mundo" (2002, Urso de Ouro em Berlim), ambos rodados em tom de cinema-vérité e à maneira do "docudrama" televisivo britânico onde o realizador se formou. Mas a abordagem mais abertamente documental de "A Caminho de Guantánamo", intercalando a reconstituição da odisseia dos três jovens, feita com actores, com entrevistas contemporâneas aos verdadeiros protagonistas, está mais do lado da televisão do que do cinema (financiado pelo Channel Four, tem tudo de docudrama televisivo e quase nenhum fôlego cinematográfico) e desenha-se como um objecto híbrido que relança o debate sobre as fronteiras do documentário e da ficção que "Neste Mundo" já explorava. Tinha tudo para ser um comentário estimulante sobre a condição contemporânea do documentário, objecto "perdido" num limbo entre o registo de um momento histórico e a necessária transformação em narrativa/ficção que qualquer trabalho de manipulação das imagens registadas implica.
Não é, contudo, esse o programa de Winterbottom, para quem o docudrama é um mero instrumento para fazer passar a mensagem e lançar o debate, com o objectivo assumido de gerar pressão pública para encerrar Guantánamo. O realizador não hesita em mostrar a extrema ingenuidade destes três adolescentes ao irem fazer uma espécie de "turismo de guerra" num Médio-Oriente de cujas convulsões políticas pouco ou nada entendem - mas usa-a para melhor desenhar o seu estatuto de inocentes apanhados numa situação que os ultrapassa, e jogar a cartada da indignação ocidental para com um sistema que condena inocentes com provas circunstanciais, transformando o filme num misto de "coluna de opinião" e de denúncia de uma injustiça imperialista.
Só que, para coluna de opinião, não é certo que uma supostamente imparcial combinação de documentário e reconstituição seja o veículo ideal; e um filme feito todo a partir do ponto de vista dos três jovens - como o próprio Winterbottom assumiu, "uma história específica rodada do ponto de vista de quem a viveu" - funciona como denúncia (e ainda mais como demonstração prática do que pode levar à "radicalização" de gente normal - é um dos aspectos positivos do objecto), mas abre o flanco a acusações de demagogia que anulam a eventual credibilidade documental.
É verdade que Winterbottom explora com sagacidade a "confusão dos géneros" do documentário contemporâneo, e que "A Caminho de Guantánamo" tem o coração no sítio certo e faz todas as perguntas que deve fazer, mas a agenda política a cumprir torna-o num panfleto. O júri de Berlim tomou nota, mas não se deixou comover. Fez bem.