Terry gilliam com carta branca e rédea curta
A existência de "O Mundo ao Contrário" deve-se inteiramente à reputação de Terry Gilliam como um dos cineastas mais azarados do mundo. De nada valeu ao antigo animador dos Monty Python ter dirigido "Os Ladrões do Tempo", "O Rei Pescador" ou "12 Macacos": desde que, em 1985, se viu obrigado a embarcar numa guerra de atrito com a Universal, que se recusava a distribuir "Brazil - O Outro Lado do Sonho", que Gilliam tem sido perseguido por uma reputação de autor descontrolado, visionário incompreendido, em nada ajudada pelos recorrentes conflitos com os produtores. Tudo culminou no desastre de "The Man Who Killed Don Quixote", cuja rodagem foi suspensa ao segundo dia (para mais informações, ver o documentário de Keith Fulton e Louis Pepe, "Lost in La Mancha"), e pelos confrontos com os irmãos Weinstein à volta do (contudo bem interessante) "Os Irmãos Grimm", cuja montagem esteve interrompida durante meses para permitir a ambas as partes descansarem e chegarem a um compromisso. Foi durante essa interrupção que Gilliam conseguiu montar e rodar, em tempo recorde e sem nenhum dos problemas que perseguiram os filmes anteriores, com carta branca do produtor de Bertolucci e Cronenberg, Jeremy Thomas, esta fantasia distorcida e escura adaptada de um romance de Mitch Cullin. "O Mundo ao Contrário" explora o mesmo tema recorrente em toda a obra de Gilliam: é um filme sobre o mundo interior que se cria quando a realidade é demasiado difícil de enfrentar, sobre a fé na ficção como salvadora da realidade. E, no caso da heroína Jeliza-Rose (uma espantosa Jodelle Ferland), a realidade é mesmo um pesadelo sem fim: filha de pais drogados para os quais prepara as seringas, a menina refugia-se num mundo interior onde as suas melhores amigas são quatro cabeças de boneca em vários maus estados de conservação e uma cópia antiga de "Alice no País das Maravilhas". Mundo esse que verá os seus horizontes alargados quando, após a morte da mãe por sobredose, o pai a arrasta para a propriedade rural decrépita da família e Jeliza-Rose trava conhecimento com o epiléptico lobotomizado e a sua irmã taxidermista com um olho de vidro que moram do outro lado da linha do comboio.
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A existência de "O Mundo ao Contrário" deve-se inteiramente à reputação de Terry Gilliam como um dos cineastas mais azarados do mundo. De nada valeu ao antigo animador dos Monty Python ter dirigido "Os Ladrões do Tempo", "O Rei Pescador" ou "12 Macacos": desde que, em 1985, se viu obrigado a embarcar numa guerra de atrito com a Universal, que se recusava a distribuir "Brazil - O Outro Lado do Sonho", que Gilliam tem sido perseguido por uma reputação de autor descontrolado, visionário incompreendido, em nada ajudada pelos recorrentes conflitos com os produtores. Tudo culminou no desastre de "The Man Who Killed Don Quixote", cuja rodagem foi suspensa ao segundo dia (para mais informações, ver o documentário de Keith Fulton e Louis Pepe, "Lost in La Mancha"), e pelos confrontos com os irmãos Weinstein à volta do (contudo bem interessante) "Os Irmãos Grimm", cuja montagem esteve interrompida durante meses para permitir a ambas as partes descansarem e chegarem a um compromisso. Foi durante essa interrupção que Gilliam conseguiu montar e rodar, em tempo recorde e sem nenhum dos problemas que perseguiram os filmes anteriores, com carta branca do produtor de Bertolucci e Cronenberg, Jeremy Thomas, esta fantasia distorcida e escura adaptada de um romance de Mitch Cullin. "O Mundo ao Contrário" explora o mesmo tema recorrente em toda a obra de Gilliam: é um filme sobre o mundo interior que se cria quando a realidade é demasiado difícil de enfrentar, sobre a fé na ficção como salvadora da realidade. E, no caso da heroína Jeliza-Rose (uma espantosa Jodelle Ferland), a realidade é mesmo um pesadelo sem fim: filha de pais drogados para os quais prepara as seringas, a menina refugia-se num mundo interior onde as suas melhores amigas são quatro cabeças de boneca em vários maus estados de conservação e uma cópia antiga de "Alice no País das Maravilhas". Mundo esse que verá os seus horizontes alargados quando, após a morte da mãe por sobredose, o pai a arrasta para a propriedade rural decrépita da família e Jeliza-Rose trava conhecimento com o epiléptico lobotomizado e a sua irmã taxidermista com um olho de vidro que moram do outro lado da linha do comboio.
Pode-se dizer que é uma história à medida de Gilliam, com o seu talento para a criação de universos barrocos e excessivos, de féeries grotescas e inventivas; é por isso surpreendente que este seja um dos filmes visualmente mais sóbrios de todo o cânone do realizador, como se tivesse compreendido que a história era suficientemente carregada para dispensar quaisquer efeitos. E, de facto, "O Mundo ao Contrário" é sobre o modo como o olhar inocente de uma criança, confrontado com as grandes questões da vida (a morte, o sexo, o amor), as encara com uma naturalidade ingénua, invocando de caminho "Brincadeiras Perigosas" ou mesmo, no tom gótico sulista que o filme (mesmo rodado no Canadá) assume, "A Sombra do Caçador".
Paradoxalmente, no entanto, é essa bem-vinda sobriedade que acaba por desfazer o filme. Tal como no igualmente falhado "O Rei Pescador" o barroquismo de Gilliam se dava mal com o realismo melodramático da história, aqui é o realismo que se pretende maravilhoso da encenação que fica aquém do tom fantástico da história: apesar da tentativa, Gilliam não consegue nunca levar-nos a ver este mundo pelos olhos de Jeliza-Rose, o que é não apenas inesperado num realizador conhecido pelas suas capacidades imaginativas como reduz "O Mundo ao Contrário" a um exercício falhado que tomba não poucas vezes no grotesco. Mais preocupante é a compreensão de que o cineasta teve carta branca para criar este objecto desconcertante e desconfortável - e que o resultado fica aquém de filmes bem mais interessantes onde a sua criatividade foi contida por limitações de orçamento ou conflitos institucionais (como, precisamente, o delírio barroco dos "Irmãos Grimm", fita injusta e imerecidamente maltratada). Ou seja, a teoria do autor incompreendido acaba de levar um rude golpe com a consciência de que Terry Gilliam, se calhar, não deve ser deixado à solta e precisa de ter rédea curta.