Histórias exemplares
Não é pelas intenções que "Crianças Invisíveis" se torna melhor filme do que o que é, mas também não há razão nenhuma para que não se sinta um respeito especial por um projecto que não é primordialmente movido nem pela "arte" nem pelo "dinheiro" (pelo menos nos termos habituais).
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Não é pelas intenções que "Crianças Invisíveis" se torna melhor filme do que o que é, mas também não há razão nenhuma para que não se sinta um respeito especial por um projecto que não é primordialmente movido nem pela "arte" nem pelo "dinheiro" (pelo menos nos termos habituais).
Isto esclarecido, convém dizer que "Crianças Invisíveis" não é, e com dificuldade o seria, um objecto cinematográfico particularmente estimulante. Em termos genéricos é desequilibrado, como quase sempre são os filmes de "sketches", mesmo que ainda nesses termos se possa encontrar uma relativa virtude na variação geográfica e numa recusa quase total do sentimentalismo fácil (talvez com excepção do episódio de Ridley Scott e da filha Jordan).
Se o episódio dos Scott (história de um fotógrafo de guerra em alucinações regressivas que configuram uma espécie de complexo de culpa), o de Veneruso (encontro entre o neo-realismo italiano e o movimento do cinema napolitano, sem a "gravitas" do primeiro nem o espírito do segundo), e o de Kátia Lund (colaboradora de Fernando Meirelles em "Cidade de Deus", aqui com uma história de "favelados" em modelo realista bastante banal) não mostram muita coisa que valha a pena assinalar, passemos com um pouco mais de pormenor pelos outros quatro.
"Tanza", de Mehdi Charef, realizador francês de origem argelina, sinaliza a mobilização de crianças e adolescentes para as sempiternas guerras e guerrilhas do continente africano. A paisagem existe com alguma força, e os miúdos são vistos como exemplos de "adultização" precoce. Inteligentemente vago, dá-se mal com a curta duração: precisava de mais tempo (nenhum filme tem mais de 18 minutos) para existir de outra maneira.
Kusturica, em "Blue Gypsy", traz todo o seu arsenal folclórico e musical de festa de aldeia para aquele que é o mais alegre de todos os episódios. Miúdos de reformatório e pequenos ladrões que Kusturica não parece ter a certeza de querer ver "reformados" desde que se mantenham "independentes" e não se tornem, por exemplo, funcionários de mafiosos, pequenos ou grandes. Um pouco anarquista, e o filme mais capaz, apesar de tudo, de tocar um retrato "libertário" da infância (algures lá muito ao fundo espreita Jean Vigo).
Spike Lee, em "Jesus Children of America", podia ter feito facilmente o mais miserabilista de todos os "sketches". É a história de um casal de junkies seropositivos (a mulher é Rosie Perez) que esconde da filha o facto de ela também estar contaminada. É violento e só não é miserabilista porque Lee tem tacto e quer acabar o filme com um sinal de esperança - mas a tangente, num filme passado em Nova Iorque, não deixa de parecer corresponder a um "statement".
Finalmente, John Woo, no mais lírico dos episódios, e se calhar o melhor (e somos insuspeitos de "johnwooismo"). Metrópole chinesa, melancolia, céu encoberto, ruas molhadas - e uma criança rica e uma criança pobre, objectos que circulam entre elas e acabam por ter um papel decisivo nos respectivos destinos. É um filme sóbrio, mas sobretudo é aquele que, pelos seus entrelaçamentos, melhor gera uma noção de pertença a um só mesmo mundo. E no fim de contas, lembrar isso, a "coexistência", é o grande propósito de "Crianças Invisíveis".