Um corpo no deserto
"Os Três Enterros de um Homem" é a muito razoável estreia de Tommy Lee Jones na realização cinematográfica (como realizador, na sua filmografia só consta mais um telefilme de há perto de dez anos), partindo de um argumento escrito pelo mexicano Guillermo Arriaga, habitual colaborador do seu compatriota Alejandro Gonzalez Iñarritu. Menos "filme de actor" do que talvez se pudesse esperar, é um belo filme "fronteiriço" sobre os "trânsitos" na fronteira entre o Texas e o México, de caminho revisitando as ruinas do "western" e a dissolução da ruralidade americana a ele associada. Para além de lançar um olhar bastante forte sobre a paisagem, que se inscreve no filme como nem por isso se tem visto muito no cinema americano recente - é verdade que em "O Segredo de Brokeback Mountain" também há uma "inscrição" da paisagem, mas para além de ser uma paisagem mais fria e nortenha, surge investida de um simbolismo de que o filme de Jones, mais físico, está quase por completo desprovido (e isto não é necessariamente um juizo comparativo de valor, só uma constatação). Mesmo que o argumento de Arriaga preserve algumas marcas estilísticas presentes nas suas colaborações com Inarritu, mormente a decomposição da narrativa em sucessivos fragmentos temporais "desordenados", estamos bastante longe delas (esses horrendos, dizemos nós, "Amores Cães" e "21 Gramas"). Mais sensato, mais adulto, mais consistente, e muito menos exibicionista, o olhar de Tommy Lee Jones está mais próximo do de alguém como John Sayles, cineasta cujo universo tem evidentes contiguidades com o deste filme, e que mais do que uma vez filmou esta zona de identidade "mestiça" para cá e para lá da fronteira americano-mexicana. "Lone Star", por exemplo - que em português se chamou "Um Corpo no Deserto", título que também se podia aplicar ao filme de Jones. O homem que tem três enterros (e que o título original nomeia, ao contrário do anonimato preferido na tradução portuguesa) chama-se Melquiades Estrada, era um imigrante ilegal algures numa terreola texana, e também ele acabou por ser "um corpo no deserto". A história central do filme é a da viagem desse corpo através do deserto, rumo a um derradeiro enterro na sua terra natal, um lugarejo mexicano. É Jones quem conduz o cortejo, em cumprimento de uma promessa, levando com ele, para além do corpo, a personagem de Barry Pepper (um guarda-fronteiriço cuja relação capital com esta história quem vir o filme perceberá).
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"Os Três Enterros de um Homem" é a muito razoável estreia de Tommy Lee Jones na realização cinematográfica (como realizador, na sua filmografia só consta mais um telefilme de há perto de dez anos), partindo de um argumento escrito pelo mexicano Guillermo Arriaga, habitual colaborador do seu compatriota Alejandro Gonzalez Iñarritu. Menos "filme de actor" do que talvez se pudesse esperar, é um belo filme "fronteiriço" sobre os "trânsitos" na fronteira entre o Texas e o México, de caminho revisitando as ruinas do "western" e a dissolução da ruralidade americana a ele associada. Para além de lançar um olhar bastante forte sobre a paisagem, que se inscreve no filme como nem por isso se tem visto muito no cinema americano recente - é verdade que em "O Segredo de Brokeback Mountain" também há uma "inscrição" da paisagem, mas para além de ser uma paisagem mais fria e nortenha, surge investida de um simbolismo de que o filme de Jones, mais físico, está quase por completo desprovido (e isto não é necessariamente um juizo comparativo de valor, só uma constatação). Mesmo que o argumento de Arriaga preserve algumas marcas estilísticas presentes nas suas colaborações com Inarritu, mormente a decomposição da narrativa em sucessivos fragmentos temporais "desordenados", estamos bastante longe delas (esses horrendos, dizemos nós, "Amores Cães" e "21 Gramas"). Mais sensato, mais adulto, mais consistente, e muito menos exibicionista, o olhar de Tommy Lee Jones está mais próximo do de alguém como John Sayles, cineasta cujo universo tem evidentes contiguidades com o deste filme, e que mais do que uma vez filmou esta zona de identidade "mestiça" para cá e para lá da fronteira americano-mexicana. "Lone Star", por exemplo - que em português se chamou "Um Corpo no Deserto", título que também se podia aplicar ao filme de Jones. O homem que tem três enterros (e que o título original nomeia, ao contrário do anonimato preferido na tradução portuguesa) chama-se Melquiades Estrada, era um imigrante ilegal algures numa terreola texana, e também ele acabou por ser "um corpo no deserto". A história central do filme é a da viagem desse corpo através do deserto, rumo a um derradeiro enterro na sua terra natal, um lugarejo mexicano. É Jones quem conduz o cortejo, em cumprimento de uma promessa, levando com ele, para além do corpo, a personagem de Barry Pepper (um guarda-fronteiriço cuja relação capital com esta história quem vir o filme perceberá).
Para além das qualidades gerais que já tentámos descrever, "Os Três Enterros..." abunda em detalhes que raramente se apanham em falso. A galeria de personagens secundárias, encarnação da resignação e da "desertificação"; uns toques de "absurdo realista", como o encontro em pleno deserto com uma "troupe" de mexicanos candidatos a imigração ilegal; ou a evocação, vagamente nostálgica, de alguma mitologia "country & western", na música (na terreola há sempre um rádio a tocar "country", como na "Última Sessão" e no "Texasville" de Bogdanovich) e na presença de músicos actores (Dwight Yoakam como xerife e Levon Helm, ex-The Band, num pequeno mas lancinante papel).
Mas a melhor medida da habilidade de Jones talvez seja isto: o facto de ele passar boa parte do filme a transportar um cadáver semi-decomposto, conservado em sal, chegar mesmo a penteá-lo, e isso nunca parecer grotesco.